quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

natal



Não sou católica, espírita, budista, umbandista, nem coisa que o valha.
Minha mãe costuma dizer que sou à toa.
Mas, quando da escuridão e o medo, construo a imagem de Iemanjá na beira da praia e rezo pela força e sal do mar inundando meu ser. Que se ilumine, por favor!
O choro sério e dolorido das crianças provoca o desejo de ser acolhida por essa entidade que invento e cultuo. Sim, rezo. Rezo para me organizar e pensar melhor.
Então fiquei pensando nesse natal. Sempre avalio que é momento de celebrar o renascimento. O meu mesmo. Sim, pois há coisa que não acaba mais em mim que deve morrer, há ciclos que devem ser cumpridos e há também o que merece renascer – crescido, fortalecido e iluminado de minha própria vida.
Mas renascer solitária parece não fazer muito sentido... Por isso gosto da reunião, da união das pessoas mais próximas, as que acompanham pacientes meus renascimentos e me brindam generosas com os seus.
Família é isso então.
A reunião de pessoas que trocam ou compartilham mortes e vidas.
Durante a gravidez da minha menina aprendi com minha mãe Luiza que é possível relevar. Que é possível haver harmonia mesmo entre partes bem diferentes. Ainda não sou muito boa nessa coisa de observar sem julgar, mas estou tentando. E talvez seja isso mesmo que eu queira celebrar nesse natal.
Que o ruim da diferença que me ameaça morra, para que o bom da diferença que amplia minha visão de mundo nasça em seu lugar.
Quero aumentar o espectro, quero ver todos os tons e enxergar os semi tons, quero me perder nas entrelinhas para descobrir diversidade de sentidos e significados.
E quero as pessoas queridas perto de mim, para que minha trajetória faça sentido desde esse pequeno universo que é a família.
Quero morrer com as amarras e hipocrisias que o conceito burguês de família carrega e nascer com a família tribo, grupo que se escolhe viver. E quando percebo que gosto de viver com as pessoas da família, fico feliz e forte para fazer meu renascimento de natal.
No dia 25 de dezembro terá almoço de natal na minha casa. Quem cozinha é meu companheiro. Eu fico em volta, cuido das crianças, sinto o apetite aumentar ao cheiro de seus temperos. Ele gosta de usar cominho. Eu gosto que ele goste. Eu gosto também da voz de Francisco por cada canto da casa, é mesmo uma música que vale muito ser ouvida. Agora também já vou gostando de ver o sorriso fácil de Helena.
A família até que pode ser assim. Um sorriso fácil e o desejo de estar junto.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Lá na Bahia


Eu não gosto de água, não...
Água do mar quando é muito clara dá medo.
Quando eu entro bem no rasinho e olho bem pra água, dá pra ver o céu. E depois dá pra ver eu mesma também. Aí parece que estou num buraco. Dá é uma gastura.
Eu não gosto de água.

Na minha praça

O dia amanheceu calmamente para mim na minha praça.
Fora daqui percebo os ruídos da agitação da semana que se aproxima do fim. É bom não estar lá no furacão da correria quente da cidade.
É bom estar aqui na minha praça com Helena nos braços. Apenas sinto falta da voz e do olhar de Francisco a me procurar.
O céu está azul manso, o sol chega ainda suave na copa das árvores e os pássaros estão animados em seus cantos diversos e frenéticos.
A vizinha ainda silenciosa.
Eu aqui. Inicio mais um dia simples de natureza de mãe. Vivo sem pensar minha vida de mãe. E aprendo dessa segunda vez que é possível ter várias vidas em vários tempos. Assim não penso em nada que vai lá fora, vivo apenas. Vivo Helena, vivo Francisco e vivo em mãe.

Fresca e leve

Conheci certa vez um rapaz que me roubou o ar. Desde que fiquei sem o ar passei a enxergar turvo e alem da matéria cotidiana.
Vivi um lampejo de vida natural onde um homem é um homem e uma mulher é uma mulher. Onde quente é de suor, onde água é de tempestade, onde riso é de êxtase, onde lágrima é de desespero.
Aquilo não demorou nem pouco nem muito, não é recente nem antigo, já que aconteceu no não tempo que a ausência de ar traz.
Antiga sou eu e por isso digo que se tratava de um rapaz, pois ele era toda a juventude viril que os rapazes bronzeados esbanjam no norte.
Eu não sou nem nunca fui moça, sempre fui antiga, inclusive minha pele é dessa cor: antiga.
Minha vida também é assim – o presente passa tão depressa que sempre já é passado. Por isso o tempo das coisas não importa, mas o que guardo delas em minha pele antiga.
Mesmo assim, há luz nos olhos - luz fresa e leve.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Madura aos dezesseis dias

É toda a maciez. Ela é a delicadeza em forma humana e pequena.
Pouso vagarosamente a mão sobre sua mão, aliso cuidadosa. O carinho é pra mim também.
Passo o rosto pelo seu cabelo colorido e as costas das mãos sobre seu rosto simples expressivo.
A mesma qualidade de vida de um bebê que revela tanta fragilidade e dependência, revela também plenitude de ser humano.
Ontem ela fez um exame muito violento que consistia em furar seu pé e apertá-lo até que seu sangue colorisse círculos impressos num papel de protocolo. Já se nasce com protocolos e notas de desempenho. Suas notas foram nove e dez até agora. Do Francisco também.
Mas o tal exame foi terrível. Helena chorava suando e gritado. Mas assim que a coisa acabou, o choro cessou e foi como se nada houvesse. Não havia sofrimento.
Quem sofre são os crescidos. Francisco já sofre e usa o choro para atrair plateia, assim ganha um aconchego a mais. Mas Helena que ainda não tem esses recursos, só está recebendo por enquanto, não sofre. Reclama da dor, muito, e quando acaba, acaba.
Tão madura atitude em tão pequena criança. Quisera eu ser assim também.
Mas que faço se não sofro? Periga ser ternamente feliz e não almejar mais nada.
Recebi um email de uma amiga perguntando sobre uma possível ação em reação a um evento contra uma moça que foi expulsa da faculdade por usar minissaia. Sim, andei pensando nisso em casa com Helena no colo. Pensei em muitas mulheres andando de minissaia pela cidade, como um exército de pernas a mostra.
Aqui de casa não farei nada. Estou muito envolvida e ocupada de minha futura mulher e temo por seu futuro. Tanta delicadeza e plenitude irão à prova em breve e há que ser mulher forte para não perder sua Natureza essencial de nascida viva.
Este mundo de hoje é de morte. A arte que se faz é para lutar contra a morte dos que não querem morrer tão forçosamente silenciados. As mulheres têm aberto gritos que não são ouvidos. Preciso ensinar Helena a falar e ser ouvida.

Segunda

Do primeiro filho não escrevi cotidiano. Meu pequeno Francisco, doce, carinhoso e tão querido menino. Mas de Helena vou escrever.
Hoje ela está com dezesseis dias. Não escrevo agora do que já passou, mas aos poucos.
Agora escrevo mesmo do presente que vivemos. Essa noite ela não me deixou dormir. Acordou de hora em hora para mamar bem pouquinho e voltar a dormir.
Tenho vontade de chorar de cansaço e quero que por magia ela durma quatro horas seguidas.
O dia ontem foi muito difícil, a vida era dura e os amores se estranhavam como se não houvesse todo o ontem. Meu sangue esquentou de raiva e minha voz silenciou num grito seco.
Pode isso influenciar o sono da pequena? Envenenar o leite?
Hoje ela está acordada desde às sete e pouco da manhã. Já mamou algumas vezes e o desejo de dormir um pouco me faz pensar que meu leite deve estar fraco ou ralo. Minhas costas ardem.
Alimento minha ansiedade de morte.
O parto é o encontro amoroso e violento entre a morte e a vida – desse encontro vai toda intensidade de cada oposto se multiplicando em contradições e revelando todo o mistério da Natureza.
Depois deveria ser só vida, mas tudo o que se vive distante da Natureza é morte. Então fica assim, morte e vida em batalha amistosa e perigosa até que a mulher se encaixe na vida cotidiana outra vez.
Vida cotidiana que é menos vida que a vida Natureza. Mas ali é possível amar calmamente, sem violência de morte.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Viagem

A viagem começou num rápido encontro de dois.
Cada parte dando íntegra de si ao próprio encontro.
Sabiam um e um que não poderiam retornar dali como antes.
A entrega era definitiva e nada igual permaneceria.
Juntaram-se então para viajar, juntos e um novo um.
Agora já outra criatura, outro nome, outro ser.
Só. Pequena criatura diante do inesperado e indefinível universo.
Aquele mundo possível era exclusivo de sensações.
Nada ali era sabido, nada era consciência ou reflexão.
Apenas o sentir e mais nada.
O ser ia se formando assim, de sensações inomináveis.
Também não havia necessidade de identificação, pois o simbólico não era presente.
Apenas estar ali, passando aquele momento de sua viagem sem volta.
Vivendo de sentir apenas.
É possível ser assim. Ser multicelular, crescendo de sensações e só.
Calor, líquidos, redes de conexão nervosa, cheiros úmidos, veludos epiteliais, contração e relaxamento, sons aritmados, carinhos sutis, medos e tensões, velocidades variadas, ausência de luz, ausência de ar, pressão, pulsação.
A criatura seguia sua viagem assim, sem questionar nada, nem mesmo a direção tomada. Ia apenas e aceitava tudo que sentia.
Aos poucos ganhava forma, deixava de ser um amontoado de coisas para ser uma coisa específica. E a forma ia contendo todo aquele conteúdo em cada célula da criatura, sem que houvesse ainda leitura para tal.
Cada sensação ficava gravada ali como uma informação secreta e evidente para o que os olhos não enxergam.
Assim a viagem traçava um trecho importante de seu percurso, onde a criatura recebia, sem saber, matéria para seu futuro simbólico.
As partes de sua forma começam a ganhar independência entre si. Pontas que buscavam distância do centro, extremidades que se recolhiam, corda que alimentava e enrolava. Havia também um eixo longitudinal dá onde brotavam as partes, por onde passavam as sensações, onde fixavam-se as memórias brutas.
Esse eixo longitudinal seria, num momento seguinte, a força – ou a fraqueza – da criatura. Ou as duas coisas em tempos alternados e complementares.
A criatura acumulava a viagem em si, sua forma expandia e mudava, o universo aumentava e ficava pequeno. Essa contradição definia as possibilidades de seu corpo naquele mundo de escuridão e calor.
Os sons aumentavam e era possível saber que alguns deles eram dirigidos especialmente à criatura, que por sua vez, não julgava nada, apenas percebia.
No entanto, esses sons e sua recepção apresentavam ao universo, um ambiente comunicativo onde se inseria a criatura em sua viagem.
Já foi dito anteriormente que aquilo não teria fim, pelo menos, não enquanto não passasse por todos os ambientes que atingiriam sua forma.
O que chegava ao fim, era a passagem de ser amorfo para criatura de forma preenchida com conteúdos brutos.
Assim a primeira luz se apresentava.

É de cor

O azul é minha cor, reconheceu.
Não só por conta dos olhos que o levam dia sim, dia não – mais quando há sol pra aquecer o que tem por dentro que se apresenta em sorriso.
Mas também pelas palavras e intenções declaradas sem vergonha de expor seu azul.
É de azul marinho, entre raso e profundo, meio do caminho, que mergulha com certa margem de segurança querendo brincar de afundar até afogar.
É azul de brisa, aquela que resfria o suor e dá uma leve friagem nas costas, quando se busca rápido o calor do sol novamente até passar.
É azul de olhos ao céu, respira fundo, semi cerra visão, intui boa coisa e continua.
É azul de tristeza profunda, alma viva inevitável.
É blues, gostando a cada nota mais e mais da dor.
.
Reconheceu e partiu.
Deixou úmido o azul, deixou fértil, cheio de vontade.
A vontade se espalhou. Lançou raízes pelos espaços vazios da casa, preenchendo todas as rupturas e doendo muito até deixar terreno compacto onde havia buracos de solidão.
Chão de terra marrom, de umidade azul, deixando pequenos nós de vida verde se espalharem feito erva.
A erva foi crescendo cheirosa e inevitável. Tão verdinha que parecia...
Não parecia, não... Era amor de fato.
Erva daninha de amor acalentador, calmo, maduro, firme.
Fruto perfumado, vermelho, fresco, carnudo, aveludado, molhado.
Mordeu-se, escorreu seu suco e melou de mel todo entorno.
Assim o azul vai ganhando tonalidades de vida transformada.
Assim ficam as lembranças mais doces acolhidas nas luzes sutis da não matéria, para que a matéria mesmo seja flexível, vigorosa e firme.

Reconheço.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A carta

Recebeu uma carta em papel especial, sem remetente, num envelope bege claro.
Ao pegar a correspondência na mão, sentiu-se em filme antigo. A aparência da coisa revelava inevitável o tema amoroso.
Mas, se há tanto tempo só, o conteúdo combinado com a forma, seria trote ou engano...
Aproximou o envelope do nariz a ver sua trajetória: era curta, poucas mãos passaram ali. Talvez remetente tenha estado em sua caixa de correio.
Agora sim, coração principiava palpitar de exceção.
Lembrou-se então do filme em que amantes de tempos diferentes encontravam-se por cartas no improvável. Avaliou com sanidade que não seria o caso.
Lembrou-se também da infância, quando, sem meios eletrônicos, levava convites de aniversário às portas de visinhos do prédio de apartamentos.
Considerou finalmente que as pessoas que poderiam lhe escrever não teriam motivo para se esconderem em envelope bege claro.
Definira assim, que se tratava de pessoa desconhecida.
Caso quisesse realmente conhecer o conteúdo da carta teria que rasgar o envelope.
Levou-o contra a luz a ver o lugar exato de abertura.
Mas o gesto era impossível. Tentou de fato, mas o envelope era inrasgável.
Revelar o segredo contido ali seria regressar à tola realidade e isso pesava.
Porque não aproveitar até o esquecimento as possibilidades de uma correspondência antiga e anônima?
Era isso que queria. Guardar bem escondido, aquele envelope na gaveta da mesa de cabeceira.
Poderia resgatá-lo do esconderijo ainda algumas vezes e ensaiar a revelação, depois de especular um pouco mais sobre seu conteúdo.
Mas firmara um compromisso com o descanso de si e jamais o faria.
Até o fim da poesia, o envelope bege claro de carta sem remetente ficaria escondido numa possível história amorosa de um só.

domingo, 23 de agosto de 2009

Chuva nos dedos

Nessa chuva não dá pra escrever.
O papel, que aguardava paciente o toque do grafite, se dissolve e impede que eu me esvaia.
Deveria ser eu mesma a escorrer.
Personagens que vão nascendo dos suspiros solitários de não vida e escorrem até os dedos buscando salvação possível na ficção.
Assim é escrever. É ter-se.
A vida é de conquistar salvações de si mesma.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

O buraco

da oficina subversões


“Foi choque anafilático” chegou-lhe aos ouvidos provocando vergonhosa alegria. Os olhos úmidos e aflitos escondiam facilmente o prazer de estar perto do teatro tremendo de dor que a morte lhe causaria.
Ainda bem que correra a gritar pelo corredor do hospital salvando a mãe, mas não conquistara o olhar orgulhoso do pai por ser sua guardiã, ao contrário, talvez tenha demorado demais a procurar ajuda.
A bronca seria recompensada na cirurgia seguinte: além dos onze dias de hospital acompanhando e distraindo a mãe, a menina ainda ficaria responsável pelos curativos no corte infeccionado.
Bem no baixo ventre, cicatriz ia de lado a lado com um buraco no último ponto da direita. Foi o médico quem o abrira para que de lá pudesse sair tudo que não deveria ter entrado.
Quatro vezes por dia era preciso trocar o curativo e a menina levava para o quarto da mãe todos os equipamentos necessários para a brincadeira de médica.
Riam-se as duas às piadas da menina que, sem se afligir com a função, procurava distrair a paciente. A mãe, querendo agradar a pequena, apertava os lábios fingindo não sentir dor. A menina fingia não perceber.
Era preciso empurrar a barriga com força até que todo o pus vazasse. Deslizava as mãos por toda a superfície, sempre em direção à pequena abertura. Secava cuidadosa com a gaze.
Depois esguichava o soro pelo buraco imaginando onde tanta água ia parar.
A mãe ali, rendida, barriga aberta, e a menina a esguichar-lhe pra dentro o soro, “ai, que gelado”.
Imersa em sua tarefa médica, tendo a mãe em suas mãos, pensava silenciosa. Teria ela mesma saído dali, daquele buraco de pus? Seria ela também uma infecção de mãe? Teria sua mãe apertado os lábios fingindo não doer quando ela buscava o mundo fora do buraco?
A menina pensou então em espiar um pouco por dentro. Rever a antiga morada, afinal aquela barriga já fora sua certo tempo.
Como que não percebesse, deixou cair pra dentro da mãe canudo por onde despejava o soro e, pra não deixar mais lixo ali, teve que mergulhar cuidadosa a fina mão na escuridão.

Era quente, úmido e vazio.

Bem lentamente, quase despercebida, ela avançava o movimento buscando descobrir algum conteúdo possível.
Já não se via seu cotovelo e ainda vazio.

A mãe, curiosa da curiosidade da filha, apenas observava e permitia com intensidade de tez a invasão. O corte deixara de doer e quase num prazer velado, empurrava a menina pra beira do abismo. Como querendo alisar seu cabelo ralo, tocou-lhe bruscamente para dentro do buraco.
Não foi queda exatamente o que houve, nem mergulho, mas a percepção do oco.
Não era preciso olhar, nem cheirar. Ali nada havia que já não tivesse espiado certa vez através dos olhos da mãe.
O vazio pleno, sem poeira, sem vacilo, sem tentativa de preenchimento, pois há plenitude no vazio também, mesmo quando fonte de identidade.
Percebia quase cega que fora, na pele mesmo, na palavra, poderia existir qualquer coisa: amor, raiva, compaixão, luxúria, fome, alegria, dor, suor. Mas no ventre profundo, de onde saíram as crias, agora não restava mais nada.
Também não havia eco na volta da cria ao primeiro lar. Não se reconheciam, nada reverberava.
Aquelas paredes suaves e vermelhas, quentes de corpo doente e vivo, escuras, quase que sangravam, mas esperavam tensas em pausa o movimento a ser feito pela criatura invasora.
Que o corte cicatrizasse naquele instante, com isso a menina não contava. E a mãe?
À percepção do perigo de se estar totalmente imersa em território inimigo, o pavor tomou-lhe o ar e já arrependida de tal investida, a menina quis livrar-se dali.
Um suor fino e frio tomou-lhe a testa. O peito em movimento rítmico. Olhos arregalados não viam nada a não ser o nada onde estava. Tentava inútil descobrir a saída procurando fonte de luz que viesse do buraco que deveria estar cuidando. Nada.
Teria a mãe coberto com a mão? Com a gaze? Fechado o curativo como quem cura definitivamente a ferida?
Talvez o ar lhe faltasse em poucos segundos e ela desejasse gritar. Chamaria o pai.
Mas como criança que molha o lençol em pesadelo e não consegue emitir som salvador a não ser debaixo do cobertor mais quente e pesado, sua voz era abafada pelo calor insuportável e nada se ouvia dentro, nada se ouvia fora.
Principiou então movimentos de natação já que não encontrava chão para os pés. Braços e pernas em atitude coordenada buscavam corajosos e desesperados a beira daquele rio seco. Porém a corrente resistia bravamente aos movimentos da menina, segurando-a em local firme e estático, prendendo-a no nada, sem amarras, sem correntes, nem laços.

Há certos territórios pessoais que não se deve conhecer, nem confirmar quando da suspeita de sua existência. A mãe de superfície já não era um exemplo humano muito promissor, no avesso não poderia ser diferente.
O erro em solidão pode ser disfarçado, omitido, maquiado, despercebido até.
O erro em cumplicidade fecha vínculo definitivo entre partes, mesmo que nunca uma palavra, mesmo que nunca um olhar, pois sabem ambos terem testemunha.

Em comum acordo afinal, prontas a livrarem-se da eminência da explosão tamanho o desespero da menina prisioneira, soro, pus, invasora, tripas, tudo escorrendo pelo buraco em grito agudo de mãe que desparia sua filha caçula.
Estava curada.
Nada agora poderia ser mais letal que revelar-se a própria infecção à filha.
A brincadeira de médica acabou e da próxima internação, a filha - agenda cheia de compromissos - só passaria às visitas.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

MAPA

da oficina subversões

Veias quentes e vulcânicas transpassam deserto de pernas. Estamos no Saara. Sou a própria areia irrigada de ilusão. Longas, aumentado o volume durante estado interessante, esse clima primaveril que não pertence a esse lugar.
Mais pra cima vem os rios amazônicos, rios caudalosos e multicoloridos. Enxurrada de criação brota das nascentes de rio e rio, e deságua em si mesma, agora bem cristalina, água de oceano profundo, gelado, salgado, desses bons de nadar, da onde não se quer sair, pois percebe-se o próprio útero de Iemanjá.
Mas assim, também parece a Lua, nossa mãe. E o ventre carrega a astronauta em viagem intragalática. Seguindo em órbitas de véus cor de rosa de cetim, atravessa o universo de camadas epiteliais até alcançar o planeta Terra.
Salto para os pés. Pois são de terra. Fui a Luanda – gosto muito – e descobri ser possível ter raízes nos pés, ser um pouco árvore. Então, são meus pés de manguezal, gostam de beira, são de lama, tem no nordeste. Nos pés que estão no chão, lá em embaixo, encontro meu nordeste.
Mas não sou só águas, fogos e lamas. Sou também asfalto, fios e fumaça.
Subindo do mangue pela estrada de arreia até chegar a inundação. Aí é possível pegar um barco a motor e chegar em território elétrico, alta tensão, fios por toda parte, base de experiências físicas, laboratório ultra tecnológico da onde espirram faíscas de luz e força. Peito elétrico, pulsar da metrópole incansável, violenta, expulsiva, São Paulo.
Braços de asfalto quente, hora de pico, vão aos caminhos, servem aos veículos, são receptores de trajetórias paulistanas, de pés corridos, de vôos disfarçados. Tenho os teatros nos braços de piche. Vivem-se aqui vidas de quaisquer, pois é nos braços que somos múltiplas - abraço e, ao ficar vermelho o semáforo, aperto as mãos em tuas costas. Sem perder o ritmo, solto, me viro e já são outras as ruas que encontram.
Tanta poluição só poderia embriagar o pensamento. Cabeça às voltas, nunca fixa moradia. Errante, morador de rua, busca albergue só por uma noite, mas não tem o documento. Falta-lhe a identidade.
Mas se for possível encontrar travesseiro na beira da estrada de Cubatão, vê-se apenas a chama, o céu escuro e a grossa fumaça branca-cinza a pesar. Dissipa-se, descansa-se de si mesma, da própria sujeira que faz de si.
A cabeça fica assim na beira da estrada, onde aceleramos buscando atravessar depressa e chegar, finalmente, em praia calma.
Se existe algo além desse mapa físico que sou, deve ser uma praia calma, de litoral recortado, cheio de pequenas baías, onde as ondas embalam a redenção de se ser humana.

ser ilha

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Mãe e filha

da oficina subversões

Enquanto durou a diferença de tamanho que a fazia acolhida quando junto da mãe, a menina ocupou seu espaço.
Nunca questionou. Sempre gostou.
Sentia mesmo que aquele era um bom lugar para se estar: junto da mãe.
Encantada com o álbum de figurinhas na banca de jornal, suspirou certa vez "que lindo!", e a mãe ensinou-lhe esse silêncio entregando-lhe o álbum "isso mesmo, nunca peça. a mamãe dá."
Olhos da mãe sempre retos, olhos da menina a voar.
Mãe de voz firme, voz de menina pouco se ouvia.
Gostando agora das bandas de rock dos anos oitenta, quase não ia a shows. Matinê aos domingos não conheceu. Acampamento com a escola, tão pouco.
Mas passeava sempre - com a mãe.
Até na apresentação de balé da sua turma a mãe a levou. As colegas - sapatilhas coloridas, coque e purpurina - estranhavam "porque ela não vai dançar?". A mãe, cuidadosa, apertava a mãozinha que desejava se esconder "ela é muito pequena".
E assim andavam as duas no domingo à tarde a caminho da igreja: de mãos dadas.
A mãe não precisava olhar em seus olhos quando acarinhava "minha companheirinha..."
Quando o pai desagradava, a mãe confessava à pequena suas infelicidades no matrimônio. A menina obediente calava e odiava ao pai. Mais uma espécie de nojo diante a figura do não merecedor das lamúrias da sua mãe.
Também era a filha que cuidava de olhar pela mãe em suas várias internações no hospital. E quando da infecção de um corte na barriga, ela apertava, secava o pus que escorria, ria para distrair a mãe, limpava bem com gaze e soro e caprichava no curativo.
A mãe percebia com tristeza "minha caçula está crescendo".
Agora mais alta, buscando outros corpos para acompanhar - corpos autorizados pela mãe - ouviu atenta o conselho "nunca procure seu namorado. deixe que ele o faça. depois, lave-se no bidê."
Logo o namorado se afastou.
A mãe, baixinha agora, aninhava-se entre os braços da filha de olhar perdido e aprovava "minha companheirinha..."
Menina amadurece e tanto amor endurece.
As mãos de uma e outra já não se encotram mais.
E os olhos que raro se cruzavam, agora miram-se pontiagudos: os da menina, vermelhos e quentes; os da mãe, sempre retos, encontram gélidos e gozadores a aflição da filha.
Não há grito, choro ou dor que a faça curvar.
Sabe bem que voz de filha não sustenta fúria de olhar.
A mãe ensinou-lhe bem: a filha cala, suas mãos silenciam.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Volver

Faz tempo que não escrevo. Faz tempo.
As coisas da vida mais inspiradoras que suavizam a rotina estão raras e tenho trabalhado bastante.
Tenho adoecido também. Dói a cabeça, doem as costas, arde a alergia em volta dos olhos que tem vistos paisagens secas e duras.
Tenho sonhado muito. Sonhos de intensas e simples violências.
No entanto, algo se move no ventre com uma vitalidade incrível. Como pequenos martelinhos empurrando minha pele e me lembrando de cuidar com carinho de tantas dores, pois a demanda de vida vai crescer e crescer.
O que já está fora guarda todos os meus sorrisos. E seu pai descobre finalmente um amor profundo, delicado, perene que a jovem esposa lhe dedica às manhãs e no calor do quarto escuro.
Apesar das paredes cinzas do escritório que levo dia a dia, as cores estão vibrantes dentro de mim, a vida busca tanto seus caminhos de luz que posso me divertir com o papel de burocrata inevitável.
Nesse exato momento, enquanto escrevo, a pequena criança mexe muito na barriga e se faz presente no texto como por imposição, como fazendo questão de já ser parte da família, mesmo que ainda seja só um volume em meu corpo e uma ideia.
E assim, sem pesar, volto ao meu diário público desculpando na poesia minhas confissões que, talvez, possam ser apenas ficções de alguém que gostaria de viver de escrever.

quarta-feira, 18 de março de 2009

minha personagem (retrato 2)

Estação

Ainda bem cedo, chega pisando cuidadosa, espia o silêncio e se senta.
Bem quieta, observa o comprido da linha margeada de capim e margaridas.
Sorri às flores, suspira e se acomoda.
Nada ainda por ali que não seja o gorjear de um ou outro pássaro mais preguiçoso.
Vez ou outra, uma folha que o vento arrasta a faz pensar que o movimento está próximo.
Fecha os olhos e bem ao longe escuta enfim o tilintar dos trilhos.
Sim, a primeira máquina vem aí. Forte, certeira, carregando os destinos que passam variados.
Sabe que ao parar, gostará do cheiro quente, gostará do frio na espinha, gostará do salgado dos olhos a esperar o fim de tanta espera, gostará da pequena dor nos maxilares que não terminam de sorrir.
E sua pele brilhará à iminência do abraço profundo que afogue longa saudade.
A cidade transformara-se pouco depois da inauguração da rodovia.
Na praça ao lado ainda os gansos no lago, ainda os micos nas gaiolas.
No bosque, ainda as crianças balançando e os homens carregando seus galões de água.
No laticínio, ainda o leite fresco e quente que chega é vendido em galões de um litro.
Mas o cassino fechou, o balneário também.
Turistas quase não vêm.
Inevitável, passam os anos, passam as horas.
Um vento mais forte faz com que a velha porteira de ferro da bilheteria bata como se houvessem passageiros.
Ela abre os olhos num susto.
Olha para trás procurando o bilheteiro.
Será que dormira tanto tempo que o amanhecer já era agora entardecer e perdera, como de costume, tudo que se passou naquele dia de estação, iclusive os passageiros?
Levanta-se levemente, ajeita o chale, segura a bolsa e sai lentamente.
Mais uma vez a mesma sensação... as pernas, no fim do dia, pesam mais.

quinta-feira, 12 de março de 2009

mensagem

Atenção. O rio que andava calmo teve anseios de novo transbordamento.
Navegantes que se assentem.
Pois suas lendas agitam corpo de dança e a agitação pode afogar despreparados.
Pés que se agarrem ao chão, olhos que se abram pra fugir à ilusão.
Que o rio tá seco e já vai tempo.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Meu pequeno de ser grande

Há um olhar para o filho que é olhar para si mesma.
Lembrar-se, mirar-se, sorrir-se, afligir-se, espreguiçar-se.
Há um olhar do filho pra mãe que é a revelação dos mais doces segredos do universo.
Natureza virgem, pouso de borboleta, mar manso, sol da tardinha.
Mas há também um olhar para o filho que é olhar para o desconhecido, para a dúvida, para o infinito.
Pequeno ser que carrega em sua existência uma enormidade de vida de mãe, de acertos e erros daquilo que não tem resposta.
Dos caminhos que vamos criando a cada escolha, a cada sim ou não, a cada história antes de dormir, na música que escolhemos para cantar.
E esse caminhar é a própria vida, e é sua consequência também, já que se trilha com.
Criança em sua brincadeira de verdade, faz-de-conta que sou rainha, mãe dinossaura, carrinho Hot Wheels, Alien do Ben 10, Mulher Maravilha, irmão, filha, dançarina e até mãe!
Criança em sua sinceridade inquestionável tem todas as verdades em seu sorriso, em sua lágrima, em sua pequena mão fina e leve, em seus olhos intensos e curiosos.
Foi Linda que me disse:
Ser mãe é multiplicar-se nas alegrias do filho, e multiplicar-se nas dores também.
E essa completude de ser e infinitude de amar é experiência incomparável, indescritível e altamente recomendável!

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

sempre essa Linda



raros são os momentos que a tenho assim.
mas de tão intensos, duram meses e meses.
até que outro encontro aconteça.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

02 de janeiro de 1993

Janeiro. Mês de férias.
Estou, como sempre, em Águas da Prata. A minha pequena cidade.
Aqui todas as ruas são minhas, também as árvores com seus perfumes. Todos os jardins de todas as casas também são meus. A linha do trem, a padaria da Dete, o Hotel Ideal, a piscina do clube, o bosque e até o cristo.
Mas o lugar que é mais meu de todos é a pracinha com sua fonte luminosa.
A pracinha, além de estar no centro da cidade, fica bem na frente da casa do Gordo e mesmo depois de tantos anos sem vê-lo, sei de cor a sua voz, seu olhar, seu sorriso e as músicas desafinadas de seu violão.
Passamos noites e noites na pracinha. E quando a piscina estava fechada, ficávamos por ali durante o dia também.
Nosso primeiro e único beijo não foi na praça, nem na piscina do clube onde nos conhecemos, mas na piscina da casa da Laura.
Conseguimos uma solidão de eternos 15 ou 20 minutos, quando finalmente pudemos silenciar.
Nessa tarde, deixei de ser princesa e o Gordo passou a ser meu eterno namorado.
Depois de 15 anos, passei em frente a sua casa: apenas silêncio.
A pracinha foi reformada e o palco vazio montado num calçadão que antes não existia, revela uma animada festa de rua no Reveillon.
Hoje, depois de tantos anos, estive novamente em São João da Boa Vista. Fui de carro com minha mãe e Cynthia; mas dessa vez minha irmã dirigia, a mãe ao lado e eu atrás, olhando pela janela e procurando como criança reconhecer os lugares onde passei os melhores dias da minha infância e adolescência.
Da última vez, quem dirigia era minha mãe, eu ao lado e Cynthia atrás.
O cafuné doído que ela fazia em minha cabeça durou o trajeto completo de São Paulo a São João.
Essa viagem foi bem curtinha, durou apenas aquele dia, e não chegamos até a Prata como de costume.
Fomos direto para o cemitério de São João da Boa Vista para o velório do meu namorado.
Bem que ele me avisou que assim que completasse 18 anos iria pra longe.