sábado, 23 de agosto de 2008

retrato 1

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

rocha

Quando essa parte terminar, vou fazer o adeus ritual.
Vou fechar essa porta e desligar cada cabo de conexão real e ilusório.
Muito mais imaginação e desejo que concretude.
Muito mais eu comigo do que nós.
Assim é ruim.
Mas também traz algo novo. Venho criando rocha.
Vou transformando em minério sólido e forte cada dor dessas.
Dou um passo e levo um empurrãozinho.
Tropeço, mas não caio.
Dói um pouco e levanto.
Silêncio, às vezes quero dar uma chorada só pra tratar da dor.
Passa rápido. A alegria de andar não me larga.
Vou mesmo em frente, olho pra trás com saudades, ar, e já vou.
Quero ser mulher rocha quente.
Firme, não esmoreço, não perco o passo.
Mas continuo móvel, sofro a passagem do tempo, me transformo.
Muto até virar areia e voar pro mar.
Aí serei deusa.
Aí serei eu mesma parte de Iemanjá, não mais sua filha, mas uma de suas estrelas mais brilhantes.
De volta aos braços da água que me gerou, que me chorou e me deixou.
Volto, sou recebida com amor, pois é só isso que existe ali.





foto Maíra Soares

O texto

Um texto.
Esse é meu jeito de dizer de coisas que não vivo externamente.
São meus segredos mais escondidos – disfarçados de ficção – revelados como foto analógica, sem tratamento.
São auto-retratos da parte interna da coxa, do conteúdo da coluna vertebral, da mitocôndria em atividade, da face elétrica do neurônio. Não pela profundidade, mas pela integridade.
Meu estado literal.
Máscaras que tirei, cebola descascada folha por folha até que se encontre o âmago mais puro e ardente.
Uso esse instrumento como violão que toco mal, ou o piano que poderia hoje tocar muito bem.
São meus inúmeros, incansáveis e repetidos depoimentos pessoais.
São cartas. Cartas para mim mesma, pois quando não sou eu a destinatária, apaixono-me pela carta e guardo-a para mim, tamanha sinceridade de sentimentos que não ousaria dizê-los.
Meu texto é o lugar onde posso viver todo o amor que não realizo no cotidiano.
Meu texto é o lugar que não tenho humildade nem vaidade, pois que vou nua e não censuro nada.
E quando troco meus textos com alguém quase sempre me arrependo, pois no lugar de palavras de sim ou de não, esperava eu receber um novo texto, música ou poesia.
Um abraço também seria uma boa resposta – não um abraço de agradecimento pelo suposto presente, mas um abraço que se dá naquele ser que finalmente conhecemos plenamente.
Em Luanda essas trocas são mais fluidas. Talvez pelo quente da terra que nos excita o espírito, talvez pela profundeza das raízes que nos permite voar...
Quando estou em Luanda, aí sim, vivo palavras de meus textos. Aí sim, sou a tinta azul sobre o papel.
Isso então: escrevo textos sobre meu azul, em Luanda.

Filha de Ártemis

A novidade veio alegre e cortante.
Voz que rasga o ar como flecha e acerta o alvo com a frieza da escuridão em noite sem lua.
Muito bem, finalmente o lugar que chegaria. Assim me esperava, assim cheguei.
Não perdi mão da minha dignidade nem por um minuto.
Ilusão, apenas quando em muita solidão.
Desengano, não.
Liberdade e firmeza essas que me deixam preparada para ouvir o oposto do que desejei.
Vida que me ensinou, distancio, acalmo o coração, respiro com razão e me reposiciono com a mesma alegria. Sim, foi cortante, mas quase não sangrou.
Tomo as rédeas que deixei escapar por poucos dias. Olho fixo no espelho do que virá e sigo em frente, cada vez mais forte. Cada vez mais filha de Ártemis.
Quero meu arco e minhas flechas. Fortaleço meus músculos e aconchego a dor na luz do coração. Não escondo, não.
Aproveito e crio mais um pouco, invisto e sei que sairei ainda mais mulher.
Chegará o momento do alívio completo? Tem que chegar. Todos merecemos se percebemos a grandeza dos desafios onde nos lançamos.
Olho o que trilhei e me orgulho.
Nada foi em vão, não é e nem será.
O sentido da existência está nela mesma, no ar de respirar, na terra de brotar, no fogo de arder e na água de fluir e banhar e chorar.
Água que fertiliza a terra. Ar que incendeia o fogo.
Elementos do meu corpo fértil dessa própria existência.
Aceito esse desafio: espalho o filho pelo mundo muito mais mãe do que preciso do pai.
Avalio o risco e trago para minha casa, meu lugar, me protejo e piso firme, olho em frente.
Não minto. Ainda anseio, mas não temo.
E, finalmente, um novo ciclo se inicia.

fecha os olhos pra ver mulher colorida de asfalto