quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Breve



Era uma beleza muito desconhecida pra mim.
Eu, urbana demais, não costumava ver ouro em pele assim, passando tão breve na rua. A rua também era nova, de uma poeira de terra seca, de um cheiro forte de esgoto e de urubus guardiões.
Mesmo assim, passado o primeiro estranhamento, aquele cenário me deixava toda mareada, meus olhos viam muitas cores, meu corpo abraçava virgem a luz que emanava de cada ser vivo daquele lugar, era bicho, era planta, era minério, era vento, era gente.
Dessa vez, eu andando reta na rua, reparando no cemitério que parecia de faz de conta, o muro pintado de cal, baixo, os túmulos enfeitados com flores artificiais de plástico no chamado “pulmão do mundo” – o pulmão do mundo respira muito mal.
Então andava, e foquei meio sem querer alguém falando ao telefone, um orelhão em frente a uma pequena venda, sabote perfumado, pente de plástico, salgadinho, sabão em pó, macarrão, óleo, chiclete, água de rosa e fumo de corda.
Ela falava natural baixo, certamente incomodada com minha espera indisfarçada.
Apressou a despedida para ceder a vez, eu agradeci, pois queria mesmo falar, com ela.
Então, bem ali mesmo na rua de pó, mergulhei num brilho intenso e escuro, era como de cobre e eu não sabia enxergar. Não porque ofuscasse, mas porque puxava para o fundo, fazia transbordar o desejo de afogar.
Não podia mais respirar, e a densidade de seu suor no olhar não me deixava dizer palavra sequer. As pessoas dali são feitas de rio.
E eu que sempre fui tão boa nadadora, engolia muita água a todo momento, bastava um encontro desses e eu descoordenava completamente braços e pernas já prendendo o ar e sendo lodo de fundo de rio.
Escorreguei na sua voz tão pequena e tímida, segurei um pouco na areia da borda de suas palavras tão leves e consegui roubar um pouquinho pra mim.
Ela era toda natural e eu sabia deixá-la vaidosa. No retrato que fizemos juntas, eu a reverenciei, rainha da terra, e ela deixou escapar uma sensualidade bruta, grave.
Menos de dois minutos e minha musa partiu.
Eu continuei minha andada, estava a trabalho – urbana que sou – mas levava seu segredo comigo.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

yemanjá

ampulheta virou e areia a escorrer
vai preenchendo os tempos da memória
vai formando a praia da história
claridade vem da lua plena
luz de seda escorrendo entre os dedos
lavando universo que pulsa nos corpos
mulheres recebem marés
líquidos movimentam vidas femininas
as crianças vêm pelas águas
os amores em pérolas perdidas na areia
do encontro salgado com mar
vida explode em divindade
corpo dilata, olho arde
pele reluz, sexo se agita
grande mãe nos recebe em onda
minha mãe yemanjá, odoyá
trago a vida nas marés dos meus tempos
trago ela na lembrança do colar que perdi
trago olhar boiando em lua cheia
trago olhos cheios de sal em gotas
trago do mar, será redenção
festa no mar, em mim, sua canção