terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O aprumo do rio é o mar

Como eu,
sabe que cada pequeno detalhe importa nesses momentos.
a cor da luz
o lugar onde se deita
a fluência de pele em pele
as palavras que vão de um pra outro em silêncio
de tão verdade, transitam livremente nas profundezas de um e de outro sem passar pela consiência, assim que não se pode repetir, não se pode lembrar, não se pode esquecer.
a música eu não conhecia, nem cantor
mas, como tudo relacionado a seus assuntos, pingou-me nos ouvidos dia desses.
então lembrei-me já perto do natal que esqueci seu aniversário! e assim, alívio, pude desfazer o presente que te dei ano passado.
quanto ao primeiro presente, aquele que te dei na areia, já soube que foi desfeito também.
foi uma flor que me contou: pulou da margem do rio onde mora, seguiu seu leito e, finalmente, afundou no mar. quando a vi, já estava azul, trazendo não as pedrinhas que se demoravam pelo caminho, mas a essência de cada uma delas. devolveu-me tudo que espalhei por aí, para que eu ficasse sempre-viva.
e assim vou em marés.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Essa baiana, tem!

Mira, las brasileñas!

Nunca vi tal tabuleiro e mesmo assim, sou dita brasileira.
Quem sabe definir mora bem longe daqui, olha com olhos curiosos de explorador e define nome que me contenha.
Identidade é coisa pro outro, aqui quem sabe não somos nós. Moramos em terras diversas e imensas, somos diversas. Mas há quem diga que não: da linha pra baixo, nosotras somos las ticas!
Então é minha fez de ficar curiosa, já que soy latina, quero hablar espanõl. Mas não consigo, minha língua é outra - não que deva me orgulhar de suas origens, pero no hablo español...
Pedro disse que a língua do futuro é o portuñol e Jesusa disse que o próximo presidente dos EUA será uma mulher latina!
Nós, brasileñas, em terras norte americas somos excêntricas, pero no mucho; somos coloridas, pero no mucho; somos bem recebidas, pero no mucho. Porque não somos índias, não somos étnicas, não seremos peça de museu como prevê Luisa. Somos mulheres comuns, moramos na cidade, somos americanas também.
Entre a academia do império e as aldeias que insistem em sobreviver sobraram nosotras, interrrogação e reticências.
A nós não cabem mais as exclamações, a mistura é tanta que parecemos com um pouco de tudo e ficamos no meio.
Mas se é mesmo pra identificar e enquadrar, fico no sul. Prefiro ser latina, prefiro arrastar a chinela a subir no salto fino (cairia com certeza). Prefiro os bordados, prefiro o chão de terra batida, prefiro o canto e a roda. Mas, claro, levo meu laptop.
Estamos no meio, somos a própria contradição, somos as baianas américanizadas, somos as minas, las ticas, as latinas, las brasileñas. Somos brasileiras.

maRcia

Nem punhado de areia, nem vaso que contenha.
Seu método é minucioso e particular.
Ela, abundante no sorriso e doce na voz que arrasta as minas, economiza na ação que, exceto eu, ninguém imagina.
Conta como se colecionasse selos, conta como fosse comum.
Assim como já não choro mais diante daquela imensidão, pois o acalanto vai aos poucos tomando-me completamente, ela posiciona-se diante e rouba primeiro a imagem.
Depois desce até a areia e se aproxima silenciosa. Vejo-a apenas de costas, mas sei que sorri.
E seu sorriso merece o desvio da breve narrativa, pois é tão seguro de si, tão orgulhoso do que sorri que faz olhos fixarem curiosidade no que deve ser o pensamento.
Segue então aproximando-se lentamente, deixa primeiro que os pés o experimentem, depois reverencia como se não o fizesse e molha enfim as mãos.
Pronto, está feito.
Volta ainda mais orgulhosa e me conta: "Viu?"
Sim, vi tudo atentamente, pois sou filha de Iemanjá e reconheço a irmandade.
Dessa vez quem sorri sou eu, finjo displicência, e confesso.
É verdade, ela coleciona mares.


domingo, 9 de novembro de 2008

uma sempre com sono, a outra sempre triste

Sempre foi assim, desde pequena.
A primeira vez que me lembro foi quando a mãe, sádica de bom grado, não me deixava sair.
Eram férias, era noite quente, eram muitos amigos na pracinha, e eu, era pra ficar em casa.
Foi na frente do espelho que comecei a praticar. Mirei, mirei.
Olhos tão azuis, tão castrados... A auto piedade revelou-se firme.
Comecei a chorar um choro sentido, triste, pura mágoa.
Criança diante a negação autoritária.
E funcionou! A mãe, convencida de seu poder sobre a menina, envaideceu-se e permitiu sua saída.
No rosto alegre e supreso da amiga, o olhar cúmplice da cena.
Eu poderia ser atriz!
Depois de alguns anos, já na escola de teatro, a mãe novamente "Não!".
Mais orgulhosa e menos esperta, tranquei-me no quarto e a amaldiçoei.
Disse mal do seu poder, reconhecendo-o e escrevendo uma carta tratado de negação de tudo o que era belo, bom e perfumado.
A carta, anos depois, seria inspiração para sua personagem Ícaro.
Apesar do talento para o drama, mãe e pai, a algoz e seu coadjuvente, sempre muito obediente, disseram não à faculdade de teatro e escolhi, cordata, o curso de Fonoaudiologia.
Foi em um estágio em uma escola municipal, assistindo à aula na sala das crianças surdas, que recebi o apelido. Minha colega, disseram os alunos, estava sempre com sono; e eu, estava sempre triste.
Aceitei. E ando confirmando.
Mesmo hoje, depois do divertido dia de trabalho, depois da acolhida carinhosa em casa, depois dos beijos do filho e do marido, ainda assim, essa tristeza permanece.
É um vazio, um silêncio que está sempre comigo, algo que nunca nasce, botão que sempre murcha antes de se abrir.
É uma desistência, é um lago de água parada.
É a maior parte do tempo.
Eu sempre fui triste.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

As estrelas

Elas são todas assim. Se olhar com um pouco mais de cuidado, verá que todas têm essas flores de Frida Kahlo.
Essa vermelhidão de auto-retrato que a todo instante quer gritar de si mesma e contaminar toda gente.
É uma certa falta de controle, elas são explosivas.
Se não for mal da coluna, pode ser da estrela, como a do Patrocínio que era capaz de virar toda a família de cabeça para baixo.
A mim não atinge, pois a família mesmo me virou de cabeça para baixo.
Já abortei várias vezes essas famílias que insistem em causar desarranjo nas flores.
Mas agora, não. Tudo vai em seu lugar.
Sei como o Rosário fazia, separar cada coisa em seu lugar. Um catálogo de gentes e coisas importantes para se orgnizar.
Cada qual com seu lugar e o meu londe de muitos.
Essas rosas vermelhas e mortas são as que marcam a separação, o fim de algo que já não importa mais.
Aos que olhavam a filha com tanta ironia e a organizavam na caixa da dispensa, oferecemos as flores e afirmamos: somos sim, vermelhas de Frida, estrelas de Patrocínio, e isso nos basta.
Sabemos o que vai por dentro, e isso nos basta.

sábado, 1 de novembro de 2008

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Às terças-feiras

A chave suava em sua mão pequena.
Ao ranger da fechadura enferrujada, lá dentro, se sabia quem chegava.
Sempre à mesma hora, sempre às terças-feiras.
Empurrou com cuidado o portão de ferro e desviou da poça d'água.
O sol brilhava pelo estreito caminho refletindo suas pernas finas.
A saia de algodão era florida, a preferida, mais curta a cada ano.
Gostava de andar lentamente o caminho.
Aproveitava do cheiro das ervas, sempre molhadas de orvalho. E os gatos e os cachorros se confundindo com as sombras das paredes desgastadas pelas chuvas do verão.
O borbulhar da água fervendo para o chá aumentava ao se aproximar.
A menina pegava uma margarida do jardim, batia à porta e entrava fechando os olhos.
Esperava na soleira da porta, estendendo a margarida. Seu sorriso era silencioso e seguro.
A avó aproximava-se, então, pegava na mão da menina e a conduzia ao lugar do dia.
Sua mãe não sabia do encontro secreto das duas.
Toda semana, a avó escolhia uma árvore do jardim, um livro de sua antiga biblioteca e as duas tomavam chá e aproveitavam da história.
Antes do almoço, a pequena se despedia com um demorado abraço e voltava pra casa.
Quando sua mãe perguntava como foi a escola, ela desviava o olhar e dizia:
- Tudo bem, mamãe.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Pra cair antes do 70

Lentamente, com apoio de seu andador, se acomoda no banquinho de madeira da escola que mais parece um quintal encantado e mostra as máscaras que trouxe do Nordeste e que serão tema e brinde de seu aniversário de 77 anos.
Dias depois recebemos o convite "Me ajude... Qual máscara devo tirar?".
Tarefa nada fácil essa... Não por despir-se da máscara, mas por reconhecê-la.
É de ter medo de si, de não admitir que dentro vive mesmo o monstro que vemos no outro.
Que atrás de algo que cobre os olhos, pode haver entrega, pode haver fogo e enxurrada.
Do encontro com alguém que, mesmo sem querer, revela-se tão verdadeiramente, é possível mostrar-se também.
Se for de amor, o mergulho sem volta é inevitável.
Se for de desavença... o que será além dos cortes?
E quando não sangra tudo na hora, sangra-se também depois da hora, sangra-se até limpar tudo que salta ao abandonar a máscara.
Duro é perceber que ainda não se é vermelha.
Duro é relembrar o texto da peça e ver que ainda faz tanto sentido, cada dia mais...
Deveria ser mote de superação, mas não, ainda ecoa...
"Eu queria não precisar de nada disso e partir!
Partir pra Espanha e virar uma dançarina sedenta de palco
Dessas que não se cansa de ensaiar, ensaiar e ensaiar
Porque a única coisa que lhe pertence é seu corpo
Quente e vermelho,
Ardente de dança,
Que trasforme toda essa angústia
em poesia concreta, violenta e verdaderia redenção!"

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Dupla

Pisou firme os dois pés na areia.
Saber enfim dos movimentos dos seus líquidos.
Viu então, pouco surpreendida, que não havia ali equilíbrio de partes.
Um e outro lado por si, sós.
Contorno de um, conteúdo de outro.
Não sabia das origens dos seus duplos,
Mas sabia as consequências.
Vida aqui e ali, tão diversas, brigando por mais espaço.
Sempre se procura a completude e os pés na areia.
Sem saber pra qual lado deveria pender,
Deixou cair corpo todo ali e esperou.
Onda que viesse e apagasse marcas duplas.
Mas já sabendo tanto de si,
Obrigou-se a mergulhar em mar próprio e avaliar.
Viu-se tão íntegra na parte que não duvidou que era duas.
Riu-se larga e tranquila, afinal descobriram-se.
Ela e suas variantes.
Gostou muito, levantou-se.
Avaliada e duplicada, buscou plano liso.
Pisou firme os pés na areia e saltou.
Ficou a planar até pronta a exposição necessária para captura da imagem dupla.
Diminuiu bem sua velocidade, assim a onda passou e misturou-se com parte e parte.
Íntegra em contradições e variantes sobre seus mesmos tons,
Sorriu e caminhou um pouco mais.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

por dentro e por fora

na verdade é só bagunça mesmo. essa que fica do lado de fora e confunde o olhar, os passos, confunde tudo.
ah, e é chato mesmo ter que arrumar, separar o que é dali o que é daqui. trabalhoso, demorado...
mas conforme vai espaçando, vai abrindo espaço novo pra pisar e firmar, o rio volta a fluir e a vida segue.
porque é assim de viver mesmo, não é? deixa um dia vir depois do outro, o que sobra vai ficando e ocupando espaço que serviria ao outro dia... quando da angústia de não se ter onde pisar, o desejo se transforma em ação e tudo se organiza, pra dentro, pra fora.
hoje melhor, amanhã pior, depois quem sabe...
e aquilo que tem bem dentro permanece em segredo, não confunde com o que vai pra fora, na vida, pois a ela não pertence.
o interior é escuramente seguro.
o íntimo sou um eu diferente, liberto do corpo ar e fixado nele matéria quente, sente prazeres do indizível.
e quando da raiva de não conter tudo em mim, só o silêncio alivia com o tempo que deve levar.
depois passa, volto pro sol e fica tudo bem, como deve ser a rotina dos que vivem... bem.

sábado, 23 de agosto de 2008

retrato 1

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

rocha

Quando essa parte terminar, vou fazer o adeus ritual.
Vou fechar essa porta e desligar cada cabo de conexão real e ilusório.
Muito mais imaginação e desejo que concretude.
Muito mais eu comigo do que nós.
Assim é ruim.
Mas também traz algo novo. Venho criando rocha.
Vou transformando em minério sólido e forte cada dor dessas.
Dou um passo e levo um empurrãozinho.
Tropeço, mas não caio.
Dói um pouco e levanto.
Silêncio, às vezes quero dar uma chorada só pra tratar da dor.
Passa rápido. A alegria de andar não me larga.
Vou mesmo em frente, olho pra trás com saudades, ar, e já vou.
Quero ser mulher rocha quente.
Firme, não esmoreço, não perco o passo.
Mas continuo móvel, sofro a passagem do tempo, me transformo.
Muto até virar areia e voar pro mar.
Aí serei deusa.
Aí serei eu mesma parte de Iemanjá, não mais sua filha, mas uma de suas estrelas mais brilhantes.
De volta aos braços da água que me gerou, que me chorou e me deixou.
Volto, sou recebida com amor, pois é só isso que existe ali.





foto Maíra Soares

O texto

Um texto.
Esse é meu jeito de dizer de coisas que não vivo externamente.
São meus segredos mais escondidos – disfarçados de ficção – revelados como foto analógica, sem tratamento.
São auto-retratos da parte interna da coxa, do conteúdo da coluna vertebral, da mitocôndria em atividade, da face elétrica do neurônio. Não pela profundidade, mas pela integridade.
Meu estado literal.
Máscaras que tirei, cebola descascada folha por folha até que se encontre o âmago mais puro e ardente.
Uso esse instrumento como violão que toco mal, ou o piano que poderia hoje tocar muito bem.
São meus inúmeros, incansáveis e repetidos depoimentos pessoais.
São cartas. Cartas para mim mesma, pois quando não sou eu a destinatária, apaixono-me pela carta e guardo-a para mim, tamanha sinceridade de sentimentos que não ousaria dizê-los.
Meu texto é o lugar onde posso viver todo o amor que não realizo no cotidiano.
Meu texto é o lugar que não tenho humildade nem vaidade, pois que vou nua e não censuro nada.
E quando troco meus textos com alguém quase sempre me arrependo, pois no lugar de palavras de sim ou de não, esperava eu receber um novo texto, música ou poesia.
Um abraço também seria uma boa resposta – não um abraço de agradecimento pelo suposto presente, mas um abraço que se dá naquele ser que finalmente conhecemos plenamente.
Em Luanda essas trocas são mais fluidas. Talvez pelo quente da terra que nos excita o espírito, talvez pela profundeza das raízes que nos permite voar...
Quando estou em Luanda, aí sim, vivo palavras de meus textos. Aí sim, sou a tinta azul sobre o papel.
Isso então: escrevo textos sobre meu azul, em Luanda.

Filha de Ártemis

A novidade veio alegre e cortante.
Voz que rasga o ar como flecha e acerta o alvo com a frieza da escuridão em noite sem lua.
Muito bem, finalmente o lugar que chegaria. Assim me esperava, assim cheguei.
Não perdi mão da minha dignidade nem por um minuto.
Ilusão, apenas quando em muita solidão.
Desengano, não.
Liberdade e firmeza essas que me deixam preparada para ouvir o oposto do que desejei.
Vida que me ensinou, distancio, acalmo o coração, respiro com razão e me reposiciono com a mesma alegria. Sim, foi cortante, mas quase não sangrou.
Tomo as rédeas que deixei escapar por poucos dias. Olho fixo no espelho do que virá e sigo em frente, cada vez mais forte. Cada vez mais filha de Ártemis.
Quero meu arco e minhas flechas. Fortaleço meus músculos e aconchego a dor na luz do coração. Não escondo, não.
Aproveito e crio mais um pouco, invisto e sei que sairei ainda mais mulher.
Chegará o momento do alívio completo? Tem que chegar. Todos merecemos se percebemos a grandeza dos desafios onde nos lançamos.
Olho o que trilhei e me orgulho.
Nada foi em vão, não é e nem será.
O sentido da existência está nela mesma, no ar de respirar, na terra de brotar, no fogo de arder e na água de fluir e banhar e chorar.
Água que fertiliza a terra. Ar que incendeia o fogo.
Elementos do meu corpo fértil dessa própria existência.
Aceito esse desafio: espalho o filho pelo mundo muito mais mãe do que preciso do pai.
Avalio o risco e trago para minha casa, meu lugar, me protejo e piso firme, olho em frente.
Não minto. Ainda anseio, mas não temo.
E, finalmente, um novo ciclo se inicia.

fecha os olhos pra ver mulher colorida de asfalto