domingo, 25 de setembro de 2011

manutenção I


a natureza ri 
da cultura 

domingo, 18 de setembro de 2011

Pescador


Pescador de corpo sempre úmido.
Peixe vivo, brilhante, vigoroso.
A força da vida bem natural, grudada no corpo firme.
Meus músculos são de rasgar a pele.
Brilho como o sol no mar.
Brilho como espuma na areia.
Não há questão de morte, já que ela – a morte – é viva em mim.
No corpo bruto, toda a morte.
















Longe do mar, regrido um pouco à noite.
Fiquei bem à espreita da noite, enganando o dia pra ver se ralentava.
Nada. Ela veio mesmo implacável com todo o seu silêncio de alma.
Toda a bagunça atrasou o sono, criou preguiça invencível e prostrou em mim.
Minha casa fica longe do mar e não sou pescador.
A pele deixa de reluzir vida e morte, nada de natureza aqui.
Nem o deus, nem o som, nem o vento.
Só o frio e o calor que se alternam e fecham cada porta e janela.
Um passo atrás. Um passo em falso. Um desengano de mim.
Respirar é muito seco. Há falta de maresia.
Onde foi que me perdi desde tão sempre?
Onde foi que larguei o peixe brilhante que pendurava no peito?
Vem minha hora de afogamento! Água e sal pra dentro.
Urgente, mar! Pescador não pode secar.


quinta-feira, 15 de setembro de 2011

acalanto


mãos em prece = acalentando o coração
oração que aquiete essa breve e sincera lágrima de saudade
i wish your door to be open soon
se eu puder espiar pela fresta, não vou olhar
se puder mesmo chegar mais perto, vou preferir ouvir
quero sentir aquele pequeno terremoto de alegria
quando do seu peito vem um oi ultra terno
som onde escuto seu peito apaziguado
som que percebo minha pele a esquentar

sabia que seria de dor essa distância
mas o tempo parece estar brincando comigo
no lugar de acalmar e passar
as vontades só aumentam
e uma doçura cresce em mim
e minhas mãos anseiam em te pegar

salvação é saber que tudo é percurso
mesmo quando não é certo estar viva
medo é de não encontrar a porta aberta jamais
ainda assim será percurso – um outro,
mas tão digno quanto

ainda bem que não temo a dor
- difícil mesmo é caber
.no amor

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Próximo mergulho


Carrego comigo para todo canto. Devoro-o. E releio muito.
Cada palavra, cada frase enchem de sentido minha intenção de ser.
Vejo tão claro eu e você na mesma personagem, em busca, olhar atento para dentro, incomodados, em busca.
Não é nada além de uma doçura de sentimento, um calor no peito, um sorriso que escapa denunciando a lembrança, a memória da pele.
É também uma frustração de ainda não ter conseguido viver. Simplesmente viver. Como se a vida não coubesse no corpo – e não sei se está larga demais ou apertada demais. Sei que não cabe bem, não se ajusta.
Aí toda essa identificação com a história que leio tanto e fico desejando te dar uns trechos ao pé do ouvido. A história de quem caminha arduamente em direção à vida.
Porque esse caminho é assim árduo, difícil demais, doloroso. Porque perguntamos sobre nós mesmos? Tanto que desejo ser simples e breve...

Outro dia, assim como a personagem do livro, enchi a alma de coragem fui para o mar. Era um sol de brilho manso e o vento inibia coragem para água fria. Deitei sobre a areia, bem espalhada e, ouvindo a vida dos outros, esperei.
Primeiro lento depois rápido o céu foi escurecendo. O vento intensificava e trazia um movimento crespo para a mansidão. De novo aquele contraste de cinza e verde claro, ainda brilho de resto de sol – porque é essa foto que revela meu altar: o mar agitado na iminência da tempestade e eu sou aquele barquinho minúsculo quase no horizonte à espera de ser passivamente tragado.
Então só naquele momento, quando já não havia mais resquício de sol ou calor e quando todas as pessoas saiam apressadas da água, meu corpo acordou ligeiro e num susto correu em direção ao mar.
Ah meu mar... Ah esse meu lugar de ser tão peixe, tão minério, tão criança. Esse lugar de sorrir ao nada, de arder, de imergir. Mar lugar de brincar de ser eu. É como se toda força do corpo se renovasse ali na água e sal e areia e vento e horizonte. É como se só ali, imersa, aquática, corpo encontrasse olhos e encontrasse alma e encontrasse cabelo e encontrasse o presente e tudo se completasse – tudo em unidade plena de existência – e isso é então a vida possível.
E agora, assim longe, seca, fico tentando segurar cada grão daquela areia em minhas mãos. Mesmo se só ficar um grão, ainda sim, alguma memória de que estou viva restará.
E poderei permanecer na beira, sem tombar, até o próximo mergulho.


domingo, 11 de setembro de 2011

Para ler


Querido náufrago,

ontem pensei muito em você. Talvez saudades, talvez o vento frio apesar do sol.
Combinei com a gente que não procuraria. Não procuro concretamente.
Mas é preciso contar algumas coisas muito importantes!
Este livro que vem me acompanhando desde então, contém um processo onde devemos nos espelhar, pois as semelhanças são de vida, como em toda poesia.
Todos aqueles que escrevem transformam sua própria existência em matéria coletiva. Será para isso que serve a arte? (você, que faz tanto rir, chora pingado por dentro. chora?)
Bem, há coisas que devem mesmo ser compartilhadas. Outras não.
Este livro fala tanto que desejo mesmo te contar e usar algumas palavras não minhas, como se eu fosse pássara de saia de penas verdes. Como se eu fosse eu.
Aí vão:

A vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.

Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da Terra e da Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente.

O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas. Só se sente nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é comunicação, é submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno silêncio, não para o silêncio astral.

O que acontecia na verdade com Lóri é que, por alguma decisão tão profunda que os motivos lhe escapavam – ela havia por medo cortado a dor. Só com Ulisses viera aprender que não se podia cortar a dor – senão se sofreria o tempo todo. E ela havia cortado sem querer ter outra coisa que em si substituísse a visão das coisas através da dor de existir, como antes. Sem a dor, ficar sem nada, perdida no seu próprio mundo e no alheio sem forma de contato.

Como toda ficção se traveste de verdade (não é assim?), se eu fosse brisa ou pássara, se você fosse alguém que se prepara e me espera, escreveria este mesmo bilhete que li no livro:

Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem – pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamando com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.



Sim, claro que é Clarice... O livro que releio muito acertadamente cheia de motivos intrínsecos aos dias que foram e aos que virão chama-se Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Meu amor por Lispector nasceu em Luanda e ainda esquenta muito.


A baleia






















A baleia é um animal enorme. É mamífera. É marítima.
Um corpo todo tão grande, todo ele couro rijo escorregadio e pulso latente.
Sua existência encerra em si o milagre da infinitude do oceano. Pois é ele sua morada, espaço selvagem para nadar livremente para a vida e para a morte.

Toda vez que você encontrar uma baleia em seus caminhos oceânicos, saiba que a vida está querendo muito te encontrar. Mas não se vê baleias na praia, nem se nadarmos rumo ao horizonte. É preciso pegar mesmo o barco, navegar bem longe, ultrapassar a borda do mar e aí sim: esperar com o coração em maresia.

A maresia é uma sensação, quase não existe verdadeiramente, pois só se sabe dela quando a própria mão toca a própria pele e o olfato confirma essa sorte. A maresia sou eu olhando o mar e seus animais.

Os animais existem para dar humanidade aos seres que pretendem ser humanos. Eles mostram sem querer que a vida vai muito além de sofrimento. Mostram que é preciso saber mesmo sentir cada dor. Mas sentir não é pensar, nem muito menos interpretar.

A baleia não interpreta o sal em seu couro vivo. Ela aceita, recebe com abertura, assim como as conchas aceitam as pérolas que vêm por dentro. A árvore com galhos e folhas aceita o vento. O vento aceita os obstáculos.

Obstáculo é um anteparo que não serve para bloquear, que não serve para paralisar, que não serve para inibir, nem desistir. Obstáculo é o tempero da existência natural. A vida sem obstáculo é a morte.

A morte é o descanso merecido após vividos tantos obstáculos. Quando se aceita cada obstáculo, reconhece-o, trabalha-se nele e com ele, ama-o e ultrapássaro, morre-se bem cansado. Isso deve ser felicidade.

Tenho em minhas mãos de maresia uma concha bem fechada que guarda secretamente uma pérola negra. A pérola está totalmente bruta e virgem. E com ela mora todo o prazer de morar no mais profundo mar.
Meu obstáculo ao gozo de vida é a concha. Apenas isso.


Esquecida em sofrimentos ancestrais que não vão se explicar,
nego embate com a concha.
Assim, ela vence e fica toda com a pérola.

Espero.

O vento deve dissolver tudo, até o que não se explica.
Quando a concha for, finalmente, areia e voar, a pérola negra bruta e virgem será minha