segunda-feira, 12 de julho de 2010

Carta de não mandar

Pego a caneta e começo assim a carta “Será?”.
A pergunta revela que os acordes doces da música que embala esse impulso, estão mesmo fazendo efeito e eu meu deito, então.
Respiro profundo, sinto que há mesmo corpo nesse couro não tão firme que vem aguentando, aguentando...
Nada como uma voz de algodão trazendo mansa a sensação de que ainda há lirismo no mundo. Permitindo vez ou outra uma lembrança mais perigosa, um desejo mais proibido, uma ação pra se arrepender amanhã.
Mesmo que distante demais, as pessoas boas de ver com olhos de comer, estão em mim. Mesmo que no maior silêncio, mesmo que na sanidade da negação, ainda há eco de ar quente, de caldo no mar revolto.
Mesmo que de lembrança é possível saber-se viva.
Mesmo que da alegria dos pequenos que, esses sim, trazem cor pros meus asfaltos, é possível ver sentido nessa estada.
Depois, não se sabe ao certo. Sei que ao olhar atrás de hoje dá pra ver vocês.
Dá pra ver, atrás ou dentro, você em mim.

Caro leitor (?)

Caro leitor,

não sou escritora de nada além de mim.

Escrevo quando tenho precioso minuto de solidão. Coisa rara nessa vida.
Aliás, venho pensando sobre essa vida. Se há mesmo algum sentido nisso ou se sou mais uma a engrossar o caldo ordinário das passagens invisíveis.
Seria bom uma pausa a mais.
Arejar.
Senti muitíssimo pela morte do Saramago. Não pela morte em si, já que é nosso destino inevitável (sim, haverá ar no fim).
Mas pela ausência física de tão grande escritor de ideias cruas e duramente reais de nós, seres pobres demais de existência. Cegos brancos.
Percebo que muitas vezes a cegueira que carrego inevitável é cinza, fico toda turva de poeira de São Paulo. É áspero que só, duro de engolir. Mas a alergia decorrente acaba por expor, mesmo que irrite demais, o sangue quente que vem por dentro. Aí alivia, pois vem água que dá uma limpada geral e consigo cegar mais cristalina.
Pensando agora no ritmo da escrita, tenho vontade de agilizar para poder ir mais parruda ao concurso de spoken word. Ah mas é difícil. Minha escrita é lenta e interna. Combina mais com imagens do que sons.
Inda mais quando o vulcão está manso. Aí as palavras não fluem mesmo, pingam.
Mas ontem, não. Havia uma erupção eminente, coisa quente mesmo que desejava silenciosa e grave derramar. Derramar simplesmente, bem volumosa, mas calma. Só pra dar aquela gozada de rotina engradada e aço frio que é preciso carregar dia a dia.
É preciso?
Como é essa amarra que vai se criando, novelo enroscado, difícil de se livrar? A cegueira vem então desse amontoada de fios que prendem o olhar, a respiração, a palavra e a atitude. Quanta bagunça dá pra fazer nessa vida. Vai entupindo veias e quando tenta-se arrumar, não se vê nada além das linhas muito bem presas em sua desordenada lógica da omissão.
Minha cegueira passa por aí então, pela omissão cinza de viver no ritmo da cidade. Cinza de asfalto e poeira, cega de poluição, ausente de atitude viva e fluida.
Haja poesia pra carregar com mais ilusão tanta realidade. Assim do jeito do Saramago, pois dá mesmo prazer ler seus cruéis retratos de nós, pois que emoldurados em ficção.
De novo: somos ficção de nossa própria realidade de não ser.