sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Lá na Bahia


Eu não gosto de água, não...
Água do mar quando é muito clara dá medo.
Quando eu entro bem no rasinho e olho bem pra água, dá pra ver o céu. E depois dá pra ver eu mesma também. Aí parece que estou num buraco. Dá é uma gastura.
Eu não gosto de água.

Na minha praça

O dia amanheceu calmamente para mim na minha praça.
Fora daqui percebo os ruídos da agitação da semana que se aproxima do fim. É bom não estar lá no furacão da correria quente da cidade.
É bom estar aqui na minha praça com Helena nos braços. Apenas sinto falta da voz e do olhar de Francisco a me procurar.
O céu está azul manso, o sol chega ainda suave na copa das árvores e os pássaros estão animados em seus cantos diversos e frenéticos.
A vizinha ainda silenciosa.
Eu aqui. Inicio mais um dia simples de natureza de mãe. Vivo sem pensar minha vida de mãe. E aprendo dessa segunda vez que é possível ter várias vidas em vários tempos. Assim não penso em nada que vai lá fora, vivo apenas. Vivo Helena, vivo Francisco e vivo em mãe.

Fresca e leve

Conheci certa vez um rapaz que me roubou o ar. Desde que fiquei sem o ar passei a enxergar turvo e alem da matéria cotidiana.
Vivi um lampejo de vida natural onde um homem é um homem e uma mulher é uma mulher. Onde quente é de suor, onde água é de tempestade, onde riso é de êxtase, onde lágrima é de desespero.
Aquilo não demorou nem pouco nem muito, não é recente nem antigo, já que aconteceu no não tempo que a ausência de ar traz.
Antiga sou eu e por isso digo que se tratava de um rapaz, pois ele era toda a juventude viril que os rapazes bronzeados esbanjam no norte.
Eu não sou nem nunca fui moça, sempre fui antiga, inclusive minha pele é dessa cor: antiga.
Minha vida também é assim – o presente passa tão depressa que sempre já é passado. Por isso o tempo das coisas não importa, mas o que guardo delas em minha pele antiga.
Mesmo assim, há luz nos olhos - luz fresa e leve.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Madura aos dezesseis dias

É toda a maciez. Ela é a delicadeza em forma humana e pequena.
Pouso vagarosamente a mão sobre sua mão, aliso cuidadosa. O carinho é pra mim também.
Passo o rosto pelo seu cabelo colorido e as costas das mãos sobre seu rosto simples expressivo.
A mesma qualidade de vida de um bebê que revela tanta fragilidade e dependência, revela também plenitude de ser humano.
Ontem ela fez um exame muito violento que consistia em furar seu pé e apertá-lo até que seu sangue colorisse círculos impressos num papel de protocolo. Já se nasce com protocolos e notas de desempenho. Suas notas foram nove e dez até agora. Do Francisco também.
Mas o tal exame foi terrível. Helena chorava suando e gritado. Mas assim que a coisa acabou, o choro cessou e foi como se nada houvesse. Não havia sofrimento.
Quem sofre são os crescidos. Francisco já sofre e usa o choro para atrair plateia, assim ganha um aconchego a mais. Mas Helena que ainda não tem esses recursos, só está recebendo por enquanto, não sofre. Reclama da dor, muito, e quando acaba, acaba.
Tão madura atitude em tão pequena criança. Quisera eu ser assim também.
Mas que faço se não sofro? Periga ser ternamente feliz e não almejar mais nada.
Recebi um email de uma amiga perguntando sobre uma possível ação em reação a um evento contra uma moça que foi expulsa da faculdade por usar minissaia. Sim, andei pensando nisso em casa com Helena no colo. Pensei em muitas mulheres andando de minissaia pela cidade, como um exército de pernas a mostra.
Aqui de casa não farei nada. Estou muito envolvida e ocupada de minha futura mulher e temo por seu futuro. Tanta delicadeza e plenitude irão à prova em breve e há que ser mulher forte para não perder sua Natureza essencial de nascida viva.
Este mundo de hoje é de morte. A arte que se faz é para lutar contra a morte dos que não querem morrer tão forçosamente silenciados. As mulheres têm aberto gritos que não são ouvidos. Preciso ensinar Helena a falar e ser ouvida.

Segunda

Do primeiro filho não escrevi cotidiano. Meu pequeno Francisco, doce, carinhoso e tão querido menino. Mas de Helena vou escrever.
Hoje ela está com dezesseis dias. Não escrevo agora do que já passou, mas aos poucos.
Agora escrevo mesmo do presente que vivemos. Essa noite ela não me deixou dormir. Acordou de hora em hora para mamar bem pouquinho e voltar a dormir.
Tenho vontade de chorar de cansaço e quero que por magia ela durma quatro horas seguidas.
O dia ontem foi muito difícil, a vida era dura e os amores se estranhavam como se não houvesse todo o ontem. Meu sangue esquentou de raiva e minha voz silenciou num grito seco.
Pode isso influenciar o sono da pequena? Envenenar o leite?
Hoje ela está acordada desde às sete e pouco da manhã. Já mamou algumas vezes e o desejo de dormir um pouco me faz pensar que meu leite deve estar fraco ou ralo. Minhas costas ardem.
Alimento minha ansiedade de morte.
O parto é o encontro amoroso e violento entre a morte e a vida – desse encontro vai toda intensidade de cada oposto se multiplicando em contradições e revelando todo o mistério da Natureza.
Depois deveria ser só vida, mas tudo o que se vive distante da Natureza é morte. Então fica assim, morte e vida em batalha amistosa e perigosa até que a mulher se encaixe na vida cotidiana outra vez.
Vida cotidiana que é menos vida que a vida Natureza. Mas ali é possível amar calmamente, sem violência de morte.