quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Viagem

A viagem começou num rápido encontro de dois.
Cada parte dando íntegra de si ao próprio encontro.
Sabiam um e um que não poderiam retornar dali como antes.
A entrega era definitiva e nada igual permaneceria.
Juntaram-se então para viajar, juntos e um novo um.
Agora já outra criatura, outro nome, outro ser.
Só. Pequena criatura diante do inesperado e indefinível universo.
Aquele mundo possível era exclusivo de sensações.
Nada ali era sabido, nada era consciência ou reflexão.
Apenas o sentir e mais nada.
O ser ia se formando assim, de sensações inomináveis.
Também não havia necessidade de identificação, pois o simbólico não era presente.
Apenas estar ali, passando aquele momento de sua viagem sem volta.
Vivendo de sentir apenas.
É possível ser assim. Ser multicelular, crescendo de sensações e só.
Calor, líquidos, redes de conexão nervosa, cheiros úmidos, veludos epiteliais, contração e relaxamento, sons aritmados, carinhos sutis, medos e tensões, velocidades variadas, ausência de luz, ausência de ar, pressão, pulsação.
A criatura seguia sua viagem assim, sem questionar nada, nem mesmo a direção tomada. Ia apenas e aceitava tudo que sentia.
Aos poucos ganhava forma, deixava de ser um amontoado de coisas para ser uma coisa específica. E a forma ia contendo todo aquele conteúdo em cada célula da criatura, sem que houvesse ainda leitura para tal.
Cada sensação ficava gravada ali como uma informação secreta e evidente para o que os olhos não enxergam.
Assim a viagem traçava um trecho importante de seu percurso, onde a criatura recebia, sem saber, matéria para seu futuro simbólico.
As partes de sua forma começam a ganhar independência entre si. Pontas que buscavam distância do centro, extremidades que se recolhiam, corda que alimentava e enrolava. Havia também um eixo longitudinal dá onde brotavam as partes, por onde passavam as sensações, onde fixavam-se as memórias brutas.
Esse eixo longitudinal seria, num momento seguinte, a força – ou a fraqueza – da criatura. Ou as duas coisas em tempos alternados e complementares.
A criatura acumulava a viagem em si, sua forma expandia e mudava, o universo aumentava e ficava pequeno. Essa contradição definia as possibilidades de seu corpo naquele mundo de escuridão e calor.
Os sons aumentavam e era possível saber que alguns deles eram dirigidos especialmente à criatura, que por sua vez, não julgava nada, apenas percebia.
No entanto, esses sons e sua recepção apresentavam ao universo, um ambiente comunicativo onde se inseria a criatura em sua viagem.
Já foi dito anteriormente que aquilo não teria fim, pelo menos, não enquanto não passasse por todos os ambientes que atingiriam sua forma.
O que chegava ao fim, era a passagem de ser amorfo para criatura de forma preenchida com conteúdos brutos.
Assim a primeira luz se apresentava.

É de cor

O azul é minha cor, reconheceu.
Não só por conta dos olhos que o levam dia sim, dia não – mais quando há sol pra aquecer o que tem por dentro que se apresenta em sorriso.
Mas também pelas palavras e intenções declaradas sem vergonha de expor seu azul.
É de azul marinho, entre raso e profundo, meio do caminho, que mergulha com certa margem de segurança querendo brincar de afundar até afogar.
É azul de brisa, aquela que resfria o suor e dá uma leve friagem nas costas, quando se busca rápido o calor do sol novamente até passar.
É azul de olhos ao céu, respira fundo, semi cerra visão, intui boa coisa e continua.
É azul de tristeza profunda, alma viva inevitável.
É blues, gostando a cada nota mais e mais da dor.
.
Reconheceu e partiu.
Deixou úmido o azul, deixou fértil, cheio de vontade.
A vontade se espalhou. Lançou raízes pelos espaços vazios da casa, preenchendo todas as rupturas e doendo muito até deixar terreno compacto onde havia buracos de solidão.
Chão de terra marrom, de umidade azul, deixando pequenos nós de vida verde se espalharem feito erva.
A erva foi crescendo cheirosa e inevitável. Tão verdinha que parecia...
Não parecia, não... Era amor de fato.
Erva daninha de amor acalentador, calmo, maduro, firme.
Fruto perfumado, vermelho, fresco, carnudo, aveludado, molhado.
Mordeu-se, escorreu seu suco e melou de mel todo entorno.
Assim o azul vai ganhando tonalidades de vida transformada.
Assim ficam as lembranças mais doces acolhidas nas luzes sutis da não matéria, para que a matéria mesmo seja flexível, vigorosa e firme.

Reconheço.