domingo, 11 de setembro de 2011

Para ler


Querido náufrago,

ontem pensei muito em você. Talvez saudades, talvez o vento frio apesar do sol.
Combinei com a gente que não procuraria. Não procuro concretamente.
Mas é preciso contar algumas coisas muito importantes!
Este livro que vem me acompanhando desde então, contém um processo onde devemos nos espelhar, pois as semelhanças são de vida, como em toda poesia.
Todos aqueles que escrevem transformam sua própria existência em matéria coletiva. Será para isso que serve a arte? (você, que faz tanto rir, chora pingado por dentro. chora?)
Bem, há coisas que devem mesmo ser compartilhadas. Outras não.
Este livro fala tanto que desejo mesmo te contar e usar algumas palavras não minhas, como se eu fosse pássara de saia de penas verdes. Como se eu fosse eu.
Aí vão:

A vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.

Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da Terra e da Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente.

O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas. Só se sente nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é comunicação, é submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno silêncio, não para o silêncio astral.

O que acontecia na verdade com Lóri é que, por alguma decisão tão profunda que os motivos lhe escapavam – ela havia por medo cortado a dor. Só com Ulisses viera aprender que não se podia cortar a dor – senão se sofreria o tempo todo. E ela havia cortado sem querer ter outra coisa que em si substituísse a visão das coisas através da dor de existir, como antes. Sem a dor, ficar sem nada, perdida no seu próprio mundo e no alheio sem forma de contato.

Como toda ficção se traveste de verdade (não é assim?), se eu fosse brisa ou pássara, se você fosse alguém que se prepara e me espera, escreveria este mesmo bilhete que li no livro:

Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem – pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamando com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.



Sim, claro que é Clarice... O livro que releio muito acertadamente cheia de motivos intrínsecos aos dias que foram e aos que virão chama-se Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Meu amor por Lispector nasceu em Luanda e ainda esquenta muito.


Nenhum comentário: