Querido
náufrago,
ontem
pensei muito em você. Talvez saudades, talvez o vento frio apesar do sol.
Combinei
com a gente que não procuraria. Não procuro concretamente.
Mas é
preciso contar algumas coisas muito importantes!
Este
livro que vem me acompanhando desde então, contém um processo onde devemos nos
espelhar, pois as semelhanças são de vida, como em toda poesia.
Todos
aqueles que escrevem transformam sua própria existência em matéria coletiva.
Será para isso que serve a arte? (você, que faz tanto rir, chora pingado por
dentro. chora?)
Bem, há
coisas que devem mesmo ser compartilhadas. Outras não.
Este
livro fala tanto que desejo mesmo te contar e usar algumas palavras não minhas,
como se eu fosse pássara de saia de penas verdes. Como se eu fosse eu.
Aí vão:
A vida não é de se brincar porque em pleno
dia se morre.
Mas há um momento em que do corpo
descansado se ergue o espírito atento, e da Terra e da Lua. Então ele, o
silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da
gente.
O coração tem que se apresentar diante do
Nada sozinho e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas. Só se
sente nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é
comunicação, é submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno
silêncio, não para o silêncio astral.
O que acontecia na verdade com Lóri é que,
por alguma decisão tão profunda que os motivos lhe escapavam – ela havia por
medo cortado a dor. Só com Ulisses viera aprender que não se podia cortar a dor
– senão se sofreria o tempo todo. E ela havia cortado sem querer ter outra
coisa que em si substituísse a visão das coisas através da dor de existir, como
antes. Sem a dor, ficar sem nada, perdida no seu próprio mundo e no alheio sem
forma de contato.
Como toda
ficção se traveste de verdade (não é assim?), se eu fosse brisa ou pássara, se
você fosse alguém que se prepara e me espera, escreveria este mesmo bilhete que
li no livro:
Existe um ser que mora dentro de mim como
se fosse a casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de
inteiramente selvagem – pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe
puseram rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo
uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu
focinho é úmido e fresco. Eu beijo seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo
preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e
que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e
suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou
não se acerta, mas, uma vez chamando com doçura e autoridade, ele vai. Se ele
fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso
também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a
gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com
o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.
Sim,
claro que é Clarice... O livro que releio muito acertadamente cheia de motivos
intrínsecos aos dias que foram e aos que virão chama-se Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Meu amor por Lispector
nasceu em Luanda e ainda esquenta muito.
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