sexta-feira, 24 de julho de 2009

O buraco

da oficina subversões


“Foi choque anafilático” chegou-lhe aos ouvidos provocando vergonhosa alegria. Os olhos úmidos e aflitos escondiam facilmente o prazer de estar perto do teatro tremendo de dor que a morte lhe causaria.
Ainda bem que correra a gritar pelo corredor do hospital salvando a mãe, mas não conquistara o olhar orgulhoso do pai por ser sua guardiã, ao contrário, talvez tenha demorado demais a procurar ajuda.
A bronca seria recompensada na cirurgia seguinte: além dos onze dias de hospital acompanhando e distraindo a mãe, a menina ainda ficaria responsável pelos curativos no corte infeccionado.
Bem no baixo ventre, cicatriz ia de lado a lado com um buraco no último ponto da direita. Foi o médico quem o abrira para que de lá pudesse sair tudo que não deveria ter entrado.
Quatro vezes por dia era preciso trocar o curativo e a menina levava para o quarto da mãe todos os equipamentos necessários para a brincadeira de médica.
Riam-se as duas às piadas da menina que, sem se afligir com a função, procurava distrair a paciente. A mãe, querendo agradar a pequena, apertava os lábios fingindo não sentir dor. A menina fingia não perceber.
Era preciso empurrar a barriga com força até que todo o pus vazasse. Deslizava as mãos por toda a superfície, sempre em direção à pequena abertura. Secava cuidadosa com a gaze.
Depois esguichava o soro pelo buraco imaginando onde tanta água ia parar.
A mãe ali, rendida, barriga aberta, e a menina a esguichar-lhe pra dentro o soro, “ai, que gelado”.
Imersa em sua tarefa médica, tendo a mãe em suas mãos, pensava silenciosa. Teria ela mesma saído dali, daquele buraco de pus? Seria ela também uma infecção de mãe? Teria sua mãe apertado os lábios fingindo não doer quando ela buscava o mundo fora do buraco?
A menina pensou então em espiar um pouco por dentro. Rever a antiga morada, afinal aquela barriga já fora sua certo tempo.
Como que não percebesse, deixou cair pra dentro da mãe canudo por onde despejava o soro e, pra não deixar mais lixo ali, teve que mergulhar cuidadosa a fina mão na escuridão.

Era quente, úmido e vazio.

Bem lentamente, quase despercebida, ela avançava o movimento buscando descobrir algum conteúdo possível.
Já não se via seu cotovelo e ainda vazio.

A mãe, curiosa da curiosidade da filha, apenas observava e permitia com intensidade de tez a invasão. O corte deixara de doer e quase num prazer velado, empurrava a menina pra beira do abismo. Como querendo alisar seu cabelo ralo, tocou-lhe bruscamente para dentro do buraco.
Não foi queda exatamente o que houve, nem mergulho, mas a percepção do oco.
Não era preciso olhar, nem cheirar. Ali nada havia que já não tivesse espiado certa vez através dos olhos da mãe.
O vazio pleno, sem poeira, sem vacilo, sem tentativa de preenchimento, pois há plenitude no vazio também, mesmo quando fonte de identidade.
Percebia quase cega que fora, na pele mesmo, na palavra, poderia existir qualquer coisa: amor, raiva, compaixão, luxúria, fome, alegria, dor, suor. Mas no ventre profundo, de onde saíram as crias, agora não restava mais nada.
Também não havia eco na volta da cria ao primeiro lar. Não se reconheciam, nada reverberava.
Aquelas paredes suaves e vermelhas, quentes de corpo doente e vivo, escuras, quase que sangravam, mas esperavam tensas em pausa o movimento a ser feito pela criatura invasora.
Que o corte cicatrizasse naquele instante, com isso a menina não contava. E a mãe?
À percepção do perigo de se estar totalmente imersa em território inimigo, o pavor tomou-lhe o ar e já arrependida de tal investida, a menina quis livrar-se dali.
Um suor fino e frio tomou-lhe a testa. O peito em movimento rítmico. Olhos arregalados não viam nada a não ser o nada onde estava. Tentava inútil descobrir a saída procurando fonte de luz que viesse do buraco que deveria estar cuidando. Nada.
Teria a mãe coberto com a mão? Com a gaze? Fechado o curativo como quem cura definitivamente a ferida?
Talvez o ar lhe faltasse em poucos segundos e ela desejasse gritar. Chamaria o pai.
Mas como criança que molha o lençol em pesadelo e não consegue emitir som salvador a não ser debaixo do cobertor mais quente e pesado, sua voz era abafada pelo calor insuportável e nada se ouvia dentro, nada se ouvia fora.
Principiou então movimentos de natação já que não encontrava chão para os pés. Braços e pernas em atitude coordenada buscavam corajosos e desesperados a beira daquele rio seco. Porém a corrente resistia bravamente aos movimentos da menina, segurando-a em local firme e estático, prendendo-a no nada, sem amarras, sem correntes, nem laços.

Há certos territórios pessoais que não se deve conhecer, nem confirmar quando da suspeita de sua existência. A mãe de superfície já não era um exemplo humano muito promissor, no avesso não poderia ser diferente.
O erro em solidão pode ser disfarçado, omitido, maquiado, despercebido até.
O erro em cumplicidade fecha vínculo definitivo entre partes, mesmo que nunca uma palavra, mesmo que nunca um olhar, pois sabem ambos terem testemunha.

Em comum acordo afinal, prontas a livrarem-se da eminência da explosão tamanho o desespero da menina prisioneira, soro, pus, invasora, tripas, tudo escorrendo pelo buraco em grito agudo de mãe que desparia sua filha caçula.
Estava curada.
Nada agora poderia ser mais letal que revelar-se a própria infecção à filha.
A brincadeira de médica acabou e da próxima internação, a filha - agenda cheia de compromissos - só passaria às visitas.

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