Nunca vi
verão mais friorento. Chuva rápida é costumeira, mas vento frio, nuvem pesada
de cinza, chuva de durar noite e dia, não. Esse tempo tá mudado mesmo.
E foi
nessa noite de chuva que vi bem forte uma luz de revelação. Essa foi boa!
O caso é
que desde a semana antes chamei gente pra ir comigo no tal evento.
Da
primeira vez não fui que me enrosquei em história de carochinha e que não
conseguia desgarrar do conto de fadas era de jeito nenhum. Não fosse o susto
das 12 badaladas e o medo do príncipe virar sapo, caia de vez naquele poço de
espelho.
Mas dessa
semana era pra ser mesmo. Quem ia comigo via chover a chuva e desistia,
primeiro o casal, depois as meninas, depois eu demorando, demorando, querendo
mesmo me perder... E não é que fui?
Disseram
pra chegar bem cedo se não, não entrava. Pois cheguei mesmo foi atrasada e
entrei, sentei primeira na fila e vi tudo com atenção verdadeira.
Que coisa
boa ter ido sozinha. Que chuva boa lavou minha alma essa noite.
Que bom
mesmo ouvir tão lindas palavras, cada uma delas escolhidas com mãos de poesia
de mulher corredora de tempos. Ouvia a menina de terra dizendo cantado as
palavras, com sua alma bem índia e gostava demais.
A outra
menina, a branquinha, que atriz! E também tinha a outra feita de pedra e vento,
a que persegue voz, a que gosta mesmo de falar e falar e faz careta e brinca
sabida do seu teatro. Tinha também um menino polêmico: bem muito antes era
vaidoso que só e fazia graça demais, agora, mais levinho, encontrou mais eixo,
baixou a voz e amansou.
É... o
tempo muda a gente mesmo. A vida muda, a história gira, os ciclos se cumprem e
vêm e vão pra ver se a gente aprende alguma coisa nessa linha de existência.
Eu já
fui, tempo atrás, uma coisa firme e muito sabida. Meus pés pisavam o chão como
se fossem de terra e o chão fosse de terra e daí essa integração. Lembro também
uma quentura nos braços e nas mãos pulsando energia bem viva e brilhante. Minha
boca era enorme por dentro e tudo ficava bem encaixado.
Era uma
coisa que eu tomava às vezes... Coisa de gosto ruim, mas quando batia... aí era
bom! E vinha isso, essa completude toda eu. Quando terminava eu sorria porque
tinha aprendido uma coisa nova de mim mesma.
E não é
que hoje, no tal evento, foi assim também! Caramba que eu pensava, ali
sentadinha na esteira, que a coisa ia se ajuntar de mim de novo.
Mas acho
mesmo que foi isso que aconteceu.
Pois
tinha teatro, mas tinha macumba demais também. E eu que tenho esse pezinho no
terreiro, já fui me espalhando no bit do tambor. Inda mais vendo a menina de
terra toda lindona na minha frente. Tudo ali me conhecia... Pois nem parece,
mas já fui parte daquela história! Aquilo dali já foi minha vida durante um
tempo. Nem foi tanto assim. Cinco anos. Mas foi alguma coisa importante, isso
não dá pra negar.
Eu ali
ouvia menos a história que cada um dos detalhes: a dança, o pulso, a cor, os
colares da Morena, a luz e as formas nas rendas, cada uma das palavras e os
desenhos que elas formavam... Ia assim comendo os pedacinhos pra ver que gosto
tinha no final.
Mas
quando a branquinha se aproximou com aquela fumacinha de cheiro e a lista de
nomes na mão - ...... – fui lançada! A nuca esquentou, a pele arrupiou, a boca
cresceu por dento, os pés ficaram no chão, as mãos, os braços... “que é isso? pára,
boba! tá sugestionada! é só teatro! nem da coisa se bebeu, pra sentir assim
ritual de tu mesma...”, pensei sem pensar, porque tava rolando mesmo e não
podia evitar.
Quis
chamar “Claudia, olha!”. Mas chamei não. Continuei ali ouvindo a história e
seguindo tudo.
Mais
macumba e, de repente, assim como um fio de fumaça que se rompe em vento
certeiro, me desliguei do passado sapo entalado na guela, fechei ciclo, sorri
de aprender coisa nova de mim- que não moro mais ali e “que bom!” não
reconhecer mais ali como casa possível pra mim! Levantei e aplaudi muito feliz
as pessoas que já amei, que já questionei e duvidei, que já senti falta e
estranhamento.
Um ciclo
importante se fechou nessa noite de chuva boa. Entendi e acolhi uma parte da
minha história. Desapeguei do que já foi meu e do que nunca foi também.
Senti um
calor alegre no coração, “boa noite” e fui embora.
Saravá!
Adeus, a deus!