domingo, 22 de maio de 2011

Náufrago

Vazio.
Assim pisava firme marinheiro o chão de cal.
A cidade era amarela e o chão era de cal.
Seu corpo muito grande pesava e aumentava o cansaço nas pernas.
Seu peito doía, mas não sabia de onde, de quando.
Sabia do mar em seu pensamento a vagar.
Sabia que era vida aquilo que seus olhos encontravam nas ruas da cidade.
Sabia que algo muito seu afundara com o barco nas profundezas escuras do mar e havia uma vontade toda honesta de recuperar em si o que via no rosto das pessoas soltas nas ruas.
Olhava tantos olhos e percebia que faltava aquela vida nos seus.
Era sua história a querer ser construída de novo. Bem de um início, da saída viva do mar, a partir de seu corpo mesmo, assim como fazem as crianças descobrindo o mundo - As sensações do corpo,
A percepção pura dos sentidos
Sem razão que censure,
Sem lógica que enquadre -
só a vivência verdadeiramente plena de quem não tem ao que remeter.
Era coragem mesmo o que sentia. Depois de toda aquela escuridão, depois de todo aquele ar que não havia, era deixar o sol chegar primeiro manso, depois bruto como ele aparentava ser e esquentar os ossos gelados.
Ele caminhava grande e manso. Não estranhava, não julgava, não pensava.
Olhava apenas, admirava e conhecia.

Ela era só uma brisa. Percorria muitos corpos recolhendo histórias para compor ficções.
Recolhia pensamentos, desejos, tristezas e ambições.
Criava enredos, fingia ser dor e prazer, ecoava gargalhadas, trançava nos pés das crianças e apressava por qualquer caminho possível.
Havia um pulso arrítmico em seu vôo, uma desordem seca um pouco áspera, uma ansiedade por completar a história.

Passando assim despercebida, mirou o náufrago enquadrado por uma casa laranja e verde. A casa sorria muito para ela. O homem parado percebia a leve mudança de temperatura. A brisa procurava seus olhos, queria roubar sua história. O homem percebeu sua intenção inadequada e invasiva e sorriu.
.Inversão.
Surpresa, cheia da novidade de não saber daquilo, parou repentina e deixou que os olhos do náufrago mergulhassem em seu acervo de vidas. Não quis sugerir, ofereceu apenas.
Cuidadoso, cabendo tão bem naquele corpo grande e quente, pousou a mão pesada sobre o pulso descompassado e conduziu novamente a brisa ao seu suave movimento.
Não pegou nada. Conheceu apenas. Olhou com respeito, inteireza e dignidade de quem nasce do mar e não despreza nunca a escuridão que vai por dentro.

Um ritmo possível se estabeleceu. Ela seguiu seu vôo em leveza plena. Poderia ser de novo aquela borboleta que pousou sobre Luanda. Poderia ser aquela pássara de saia de penas verdes que se transformou em mulher de terra fresca e úmida. Aproveitava o cheiro de maresia que brotava de si, não deixava rastro, levava tudo e não buscava mais nada. Era apenas. [Ser apenas.]

Ele sorriu. Já não estava vazio. Tinha memória do sol quando a brisa chegou, tinha memória do arrepio quando a brisa se foi. Podia carregar a lembrança da sensação de conhecer novas possibilidades, de optar apenas por tocá-las e guardar em suas mãos um pouco do que aquela brisa lhe oferecia.
Seu olhar emergia em água clara de sorriso de criança
Um olho para cada criança
Já era pai agora, já era mais que um náufrago, era uma história começando a ser contatada

3 comentários:

Sol Bentto disse...

Lindo!
Seu texto é como água,invade...desloca.
Sou Sol Bento, amiga da Flavinha Tavares. Muito bom compartinhar suas escritas.

Maysa Lepique disse...

Aviso ao meu personagem: ao ouvir seus motivos de ser náufrago, mergulhei em mar profundo seduzida por canto de sereia. Deixei ser afogada pelas histórias que eu mesma criei a partir das suas palavras com olhos inundados e vermelhos. Sua intensidade trouxe suas lembranças e despertou minhas inspirações. Toda literatura é ficção.

Anônimo disse...

Toda ficção se traveste de verdade, e insiste tanto, que até mesmo ela própria acredita. E quando aqueles que sabiam dela como fantasia se forem, ela como verdade permanecerá. E assim se cria um mito...
(de um náufrago qualquer, numa manhã qualquer, quebrando um silêncio...)