da oficina subversões
“Foi choque anafilático” chegou-lhe aos ouvidos provocando vergonhosa alegria. Os olhos úmidos e aflitos escondiam facilmente o prazer de estar perto do teatro tremendo de dor que a morte lhe causaria.
Ainda bem que correra a gritar pelo corredor do hospital salvando a mãe, mas não conquistara o olhar orgulhoso do pai por ser sua guardiã, ao contrário, talvez tenha demorado demais a procurar ajuda.
A bronca seria recompensada na cirurgia seguinte: além dos onze dias de hospital acompanhando e distraindo a mãe, a menina ainda ficaria responsável pelos curativos no corte infeccionado.
Bem no baixo ventre, cicatriz ia de lado a lado com um buraco no último ponto da direita. Foi o médico quem o abrira para que de lá pudesse sair tudo que não deveria ter entrado.
Quatro vezes por dia era preciso trocar o curativo e a menina levava para o quarto da mãe todos os equipamentos necessários para a brincadeira de médica.
Riam-se as duas às piadas da menina que, sem se afligir com a função, procurava distrair a paciente. A mãe, querendo agradar a pequena, apertava os lábios fingindo não sentir dor. A menina fingia não perceber.
Era preciso empurrar a barriga com força até que todo o pus vazasse. Deslizava as mãos por toda a superfície, sempre em direção à pequena abertura. Secava cuidadosa com a gaze.
Depois esguichava o soro pelo buraco imaginando onde tanta água ia parar.
A mãe ali, rendida, barriga aberta, e a menina a esguichar-lhe pra dentro o soro, “ai, que gelado”.
Imersa em sua tarefa médica, tendo a mãe em suas mãos, pensava silenciosa. Teria ela mesma saído dali, daquele buraco de pus? Seria ela também uma infecção de mãe? Teria sua mãe apertado os lábios fingindo não doer quando ela buscava o mundo fora do buraco?
A menina pensou então em espiar um pouco por dentro. Rever a antiga morada, afinal aquela barriga já fora sua certo tempo.
Como que não percebesse, deixou cair pra dentro da mãe canudo por onde despejava o soro e, pra não deixar mais lixo ali, teve que mergulhar cuidadosa a fina mão na escuridão.
Era quente, úmido e vazio.
Bem lentamente, quase despercebida, ela avançava o movimento buscando descobrir algum conteúdo possível.
Já não se via seu cotovelo e ainda vazio.
A mãe, curiosa da curiosidade da filha, apenas observava e permitia com intensidade de tez a invasão. O corte deixara de doer e quase num prazer velado, empurrava a menina pra beira do abismo. Como querendo alisar seu cabelo ralo, tocou-lhe bruscamente para dentro do buraco.
Não foi queda exatamente o que houve, nem mergulho, mas a percepção do oco.
Não era preciso olhar, nem cheirar. Ali nada havia que já não tivesse espiado certa vez através dos olhos da mãe.
O vazio pleno, sem poeira, sem vacilo, sem tentativa de preenchimento, pois há plenitude no vazio também, mesmo quando fonte de identidade.
Percebia quase cega que fora, na pele mesmo, na palavra, poderia existir qualquer coisa: amor, raiva, compaixão, luxúria, fome, alegria, dor, suor. Mas no ventre profundo, de onde saíram as crias, agora não restava mais nada.
Também não havia eco na volta da cria ao primeiro lar. Não se reconheciam, nada reverberava.
Aquelas paredes suaves e vermelhas, quentes de corpo doente e vivo, escuras, quase que sangravam, mas esperavam tensas em pausa o movimento a ser feito pela criatura invasora.
Que o corte cicatrizasse naquele instante, com isso a menina não contava. E a mãe?
À percepção do perigo de se estar totalmente imersa em território inimigo, o pavor tomou-lhe o ar e já arrependida de tal investida, a menina quis livrar-se dali.
Um suor fino e frio tomou-lhe a testa. O peito em movimento rítmico. Olhos arregalados não viam nada a não ser o nada onde estava. Tentava inútil descobrir a saída procurando fonte de luz que viesse do buraco que deveria estar cuidando. Nada.
Teria a mãe coberto com a mão? Com a gaze? Fechado o curativo como quem cura definitivamente a ferida?
Talvez o ar lhe faltasse em poucos segundos e ela desejasse gritar. Chamaria o pai.
Mas como criança que molha o lençol em pesadelo e não consegue emitir som salvador a não ser debaixo do cobertor mais quente e pesado, sua voz era abafada pelo calor insuportável e nada se ouvia dentro, nada se ouvia fora.
Principiou então movimentos de natação já que não encontrava chão para os pés. Braços e pernas em atitude coordenada buscavam corajosos e desesperados a beira daquele rio seco. Porém a corrente resistia bravamente aos movimentos da menina, segurando-a em local firme e estático, prendendo-a no nada, sem amarras, sem correntes, nem laços.
Há certos territórios pessoais que não se deve conhecer, nem confirmar quando da suspeita de sua existência. A mãe de superfície já não era um exemplo humano muito promissor, no avesso não poderia ser diferente.
O erro em solidão pode ser disfarçado, omitido, maquiado, despercebido até.
O erro em cumplicidade fecha vínculo definitivo entre partes, mesmo que nunca uma palavra, mesmo que nunca um olhar, pois sabem ambos terem testemunha.
Em comum acordo afinal, prontas a livrarem-se da eminência da explosão tamanho o desespero da menina prisioneira, soro, pus, invasora, tripas, tudo escorrendo pelo buraco em grito agudo de mãe que desparia sua filha caçula.
Estava curada.
Nada agora poderia ser mais letal que revelar-se a própria infecção à filha.
A brincadeira de médica acabou e da próxima internação, a filha - agenda cheia de compromissos - só passaria às visitas.
sexta-feira, 24 de julho de 2009
sexta-feira, 17 de julho de 2009
MAPA
da oficina subversões
Veias quentes e vulcânicas transpassam deserto de pernas. Estamos no Saara. Sou a própria areia irrigada de ilusão. Longas, aumentado o volume durante estado interessante, esse clima primaveril que não pertence a esse lugar.
Mais pra cima vem os rios amazônicos, rios caudalosos e multicoloridos. Enxurrada de criação brota das nascentes de rio e rio, e deságua em si mesma, agora bem cristalina, água de oceano profundo, gelado, salgado, desses bons de nadar, da onde não se quer sair, pois percebe-se o próprio útero de Iemanjá.
Mas assim, também parece a Lua, nossa mãe. E o ventre carrega a astronauta em viagem intragalática. Seguindo em órbitas de véus cor de rosa de cetim, atravessa o universo de camadas epiteliais até alcançar o planeta Terra.
Salto para os pés. Pois são de terra. Fui a Luanda – gosto muito – e descobri ser possível ter raízes nos pés, ser um pouco árvore. Então, são meus pés de manguezal, gostam de beira, são de lama, tem no nordeste. Nos pés que estão no chão, lá em embaixo, encontro meu nordeste.
Mas não sou só águas, fogos e lamas. Sou também asfalto, fios e fumaça.
Subindo do mangue pela estrada de arreia até chegar a inundação. Aí é possível pegar um barco a motor e chegar em território elétrico, alta tensão, fios por toda parte, base de experiências físicas, laboratório ultra tecnológico da onde espirram faíscas de luz e força. Peito elétrico, pulsar da metrópole incansável, violenta, expulsiva, São Paulo.
Braços de asfalto quente, hora de pico, vão aos caminhos, servem aos veículos, são receptores de trajetórias paulistanas, de pés corridos, de vôos disfarçados. Tenho os teatros nos braços de piche. Vivem-se aqui vidas de quaisquer, pois é nos braços que somos múltiplas - abraço e, ao ficar vermelho o semáforo, aperto as mãos em tuas costas. Sem perder o ritmo, solto, me viro e já são outras as ruas que encontram.
Tanta poluição só poderia embriagar o pensamento. Cabeça às voltas, nunca fixa moradia. Errante, morador de rua, busca albergue só por uma noite, mas não tem o documento. Falta-lhe a identidade.
Mas se for possível encontrar travesseiro na beira da estrada de Cubatão, vê-se apenas a chama, o céu escuro e a grossa fumaça branca-cinza a pesar. Dissipa-se, descansa-se de si mesma, da própria sujeira que faz de si.
A cabeça fica assim na beira da estrada, onde aceleramos buscando atravessar depressa e chegar, finalmente, em praia calma.
Se existe algo além desse mapa físico que sou, deve ser uma praia calma, de litoral recortado, cheio de pequenas baías, onde as ondas embalam a redenção de se ser humana.
Veias quentes e vulcânicas transpassam deserto de pernas. Estamos no Saara. Sou a própria areia irrigada de ilusão. Longas, aumentado o volume durante estado interessante, esse clima primaveril que não pertence a esse lugar.
Mais pra cima vem os rios amazônicos, rios caudalosos e multicoloridos. Enxurrada de criação brota das nascentes de rio e rio, e deságua em si mesma, agora bem cristalina, água de oceano profundo, gelado, salgado, desses bons de nadar, da onde não se quer sair, pois percebe-se o próprio útero de Iemanjá.
Mas assim, também parece a Lua, nossa mãe. E o ventre carrega a astronauta em viagem intragalática. Seguindo em órbitas de véus cor de rosa de cetim, atravessa o universo de camadas epiteliais até alcançar o planeta Terra.
Salto para os pés. Pois são de terra. Fui a Luanda – gosto muito – e descobri ser possível ter raízes nos pés, ser um pouco árvore. Então, são meus pés de manguezal, gostam de beira, são de lama, tem no nordeste. Nos pés que estão no chão, lá em embaixo, encontro meu nordeste.
Mas não sou só águas, fogos e lamas. Sou também asfalto, fios e fumaça.
Subindo do mangue pela estrada de arreia até chegar a inundação. Aí é possível pegar um barco a motor e chegar em território elétrico, alta tensão, fios por toda parte, base de experiências físicas, laboratório ultra tecnológico da onde espirram faíscas de luz e força. Peito elétrico, pulsar da metrópole incansável, violenta, expulsiva, São Paulo.
Braços de asfalto quente, hora de pico, vão aos caminhos, servem aos veículos, são receptores de trajetórias paulistanas, de pés corridos, de vôos disfarçados. Tenho os teatros nos braços de piche. Vivem-se aqui vidas de quaisquer, pois é nos braços que somos múltiplas - abraço e, ao ficar vermelho o semáforo, aperto as mãos em tuas costas. Sem perder o ritmo, solto, me viro e já são outras as ruas que encontram.
Tanta poluição só poderia embriagar o pensamento. Cabeça às voltas, nunca fixa moradia. Errante, morador de rua, busca albergue só por uma noite, mas não tem o documento. Falta-lhe a identidade.
Mas se for possível encontrar travesseiro na beira da estrada de Cubatão, vê-se apenas a chama, o céu escuro e a grossa fumaça branca-cinza a pesar. Dissipa-se, descansa-se de si mesma, da própria sujeira que faz de si.
A cabeça fica assim na beira da estrada, onde aceleramos buscando atravessar depressa e chegar, finalmente, em praia calma.
Se existe algo além desse mapa físico que sou, deve ser uma praia calma, de litoral recortado, cheio de pequenas baías, onde as ondas embalam a redenção de se ser humana.
quinta-feira, 16 de julho de 2009
Mãe e filha
da oficina subversões
Enquanto durou a diferença de tamanho que a fazia acolhida quando junto da mãe, a menina ocupou seu espaço.
Nunca questionou. Sempre gostou.
Sentia mesmo que aquele era um bom lugar para se estar: junto da mãe.
Encantada com o álbum de figurinhas na banca de jornal, suspirou certa vez "que lindo!", e a mãe ensinou-lhe esse silêncio entregando-lhe o álbum "isso mesmo, nunca peça. a mamãe dá."
Olhos da mãe sempre retos, olhos da menina a voar.
Mãe de voz firme, voz de menina pouco se ouvia.
Gostando agora das bandas de rock dos anos oitenta, quase não ia a shows. Matinê aos domingos não conheceu. Acampamento com a escola, tão pouco.
Mas passeava sempre - com a mãe.
Até na apresentação de balé da sua turma a mãe a levou. As colegas - sapatilhas coloridas, coque e purpurina - estranhavam "porque ela não vai dançar?". A mãe, cuidadosa, apertava a mãozinha que desejava se esconder "ela é muito pequena".
E assim andavam as duas no domingo à tarde a caminho da igreja: de mãos dadas.
A mãe não precisava olhar em seus olhos quando acarinhava "minha companheirinha..."
Quando o pai desagradava, a mãe confessava à pequena suas infelicidades no matrimônio. A menina obediente calava e odiava ao pai. Mais uma espécie de nojo diante a figura do não merecedor das lamúrias da sua mãe.
Também era a filha que cuidava de olhar pela mãe em suas várias internações no hospital. E quando da infecção de um corte na barriga, ela apertava, secava o pus que escorria, ria para distrair a mãe, limpava bem com gaze e soro e caprichava no curativo.
A mãe percebia com tristeza "minha caçula está crescendo".
Agora mais alta, buscando outros corpos para acompanhar - corpos autorizados pela mãe - ouviu atenta o conselho "nunca procure seu namorado. deixe que ele o faça. depois, lave-se no bidê."
Logo o namorado se afastou.
A mãe, baixinha agora, aninhava-se entre os braços da filha de olhar perdido e aprovava "minha companheirinha..."
Menina amadurece e tanto amor endurece.
As mãos de uma e outra já não se encotram mais.
E os olhos que raro se cruzavam, agora miram-se pontiagudos: os da menina, vermelhos e quentes; os da mãe, sempre retos, encontram gélidos e gozadores a aflição da filha.
Não há grito, choro ou dor que a faça curvar.
Sabe bem que voz de filha não sustenta fúria de olhar.
A mãe ensinou-lhe bem: a filha cala, suas mãos silenciam.
Enquanto durou a diferença de tamanho que a fazia acolhida quando junto da mãe, a menina ocupou seu espaço.
Nunca questionou. Sempre gostou.
Sentia mesmo que aquele era um bom lugar para se estar: junto da mãe.
Encantada com o álbum de figurinhas na banca de jornal, suspirou certa vez "que lindo!", e a mãe ensinou-lhe esse silêncio entregando-lhe o álbum "isso mesmo, nunca peça. a mamãe dá."
Olhos da mãe sempre retos, olhos da menina a voar.
Mãe de voz firme, voz de menina pouco se ouvia.
Gostando agora das bandas de rock dos anos oitenta, quase não ia a shows. Matinê aos domingos não conheceu. Acampamento com a escola, tão pouco.
Mas passeava sempre - com a mãe.
Até na apresentação de balé da sua turma a mãe a levou. As colegas - sapatilhas coloridas, coque e purpurina - estranhavam "porque ela não vai dançar?". A mãe, cuidadosa, apertava a mãozinha que desejava se esconder "ela é muito pequena".
E assim andavam as duas no domingo à tarde a caminho da igreja: de mãos dadas.
A mãe não precisava olhar em seus olhos quando acarinhava "minha companheirinha..."
Quando o pai desagradava, a mãe confessava à pequena suas infelicidades no matrimônio. A menina obediente calava e odiava ao pai. Mais uma espécie de nojo diante a figura do não merecedor das lamúrias da sua mãe.
Também era a filha que cuidava de olhar pela mãe em suas várias internações no hospital. E quando da infecção de um corte na barriga, ela apertava, secava o pus que escorria, ria para distrair a mãe, limpava bem com gaze e soro e caprichava no curativo.
A mãe percebia com tristeza "minha caçula está crescendo".
Agora mais alta, buscando outros corpos para acompanhar - corpos autorizados pela mãe - ouviu atenta o conselho "nunca procure seu namorado. deixe que ele o faça. depois, lave-se no bidê."
Logo o namorado se afastou.
A mãe, baixinha agora, aninhava-se entre os braços da filha de olhar perdido e aprovava "minha companheirinha..."
Menina amadurece e tanto amor endurece.
As mãos de uma e outra já não se encotram mais.
E os olhos que raro se cruzavam, agora miram-se pontiagudos: os da menina, vermelhos e quentes; os da mãe, sempre retos, encontram gélidos e gozadores a aflição da filha.
Não há grito, choro ou dor que a faça curvar.
Sabe bem que voz de filha não sustenta fúria de olhar.
A mãe ensinou-lhe bem: a filha cala, suas mãos silenciam.
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