quinta-feira, 21 de julho de 2011

Coragem Marinha


Ela criou coragem!
Seu nome era Marinho, mas queria mesmo era chamar-se Celeste.
Nem sabia que coragem era coisa de se criar – inventar de dentro de si, fazer crescer numa inspiração profunda e sorrida, pra depois emergir pela pele, fazendo desejo sonhado virar ação bem real e verdadeira.
Era sábado. Abriu a grande janela do seu quarto da onde assistia o movimento dos pássaros invisíveis nas árvores e olhou o céu azulzinho.
Era inverno, mas o calor se apresentava tirano em cores quentes e contraditórias.
Marinho estava bem sozinha em sua casa e o que ouvia era saudade dos sons que preenchiam a rotina da sua vida, mas que naquele sábado ensolarado estavam muito, muito longe – distantes de seus olhos bem claros e limpos.
Todos os dias, chegava do trabalho e deixava sua bolsa sobre um banco na sala. A bolsa estava sempre pesada, carregava essas coisas que – dizem – toda mulher carrega. Mas para esse final de semana, a bolsa guardava um presente secreto que Marinho hesitava encontrar.
Na noite anterior, Marinho foi com sua amiga de perfume confortante a um espetáculo internacional de performance. Gostou muito no começo – quase todos os intérpretes eram idosos, velhos mesmo, e brincavam com seus corpos velhos e pesados e duros em cena de comédia politicamente incorreta (que ela bem gostava, às vezes). Mas quando o único jovem tomou a cena e passou a fazer drama em movimentos de dança contemporânea, Marinho realmente ficou com sono. Nenhuma graça havia naquele corpo jovem e musculoso. O moço fazia cara de interpretação, cara de sofrimento, cara e curvas no corpo que deveriam provocar uma emoção de desajuste. Mas Marinho preferia era ver os velhos barrigudos vestidos de mulheres muito maquiadas.
Ela se identificava com aquilo. Pensava que envelheceria daquele jeito- sendo puta de cabaré falido!
Quando saíram do teatro, sua amiga propôs que fossem até sua casa para que pudesse pegar o presente e entregá-lo com alegria generosa à jovem que amava ternamente. Marinho gostava daquele amor. Retribuía. Aceitou a proposta.
Recebeu as orientações e viu que o presente era uma chave.
Na verdade, duas. Mas que abririam a mesma porta.
Abririam a porta do chalé da rua de areia e terra da pequena praia que Marinho gostava tanto e visitava tão pouco, tão menos do que desejava.
Pois bem no começo do sol daquele sábado, ela podia abrir sua bolsa e pegar a chave e ir pra praia!...
Marinho preparava seu café pensando nas pessoas com quem teria que falar antes de sair de casa. Pensava também nas coisas que precisaria organizar, se levaria comida ou iria a um restaurante, achou que levar comida economizaria bem, mas teria que cozinhar alguma coisa logo cedo e isso atrasaria sua saída, e não queria sair tarde, pois sua amiga recomendou-lhe o pôr do sol na praia. Então decidiu levar a sopa que já estava pronta para o jantar e almoçaria qualquer coisa na rua antes de pegar a estrada.
Decidiu que era imprescindível levar sua bicicleta, mas não havia modo adequado de fazer o transporte.
Ainda não havia dado nenhum telefonema, eram oito horas da manhã.
Pensava como comunicaria às pessoas que faria mesmo aquilo. Sabia que viriam as censuras de sempre e sabia que desistiria só na percepção do tom de voz, nem seria necessária a sentença ‘vai fazer o quê?’.
Tomando o café e pensando muito que talvez fosse melhor mesmo desistir, Marinho pegou o telefone e muito natural e simplesmente omitiu durante a breve conversa que viajaria naquele final de semana.
Desligou e sorriu. Poderia ser livre por dois dias!
Terminou rapidamente seu café e começou a arrumar sua pequena bagagem. Levaria roupa de cama com cobertores, pois costuma esfriar à noite. Levaria uma caixa com coisas para o jantar e para o café da manhã. Levaria livros para ler no domingo na praia. Levaria papeis para escrever algumas ideias que talvez brotassem. Levaria maiô, toalhas, roupa para andar de bicicleta e roupa para voltar para casa na domingo. Levaria a bicicleta.
Abriu bem seu carro, deitou o banco de trás, suou e conseguiu enfiar lá dentro a bicicleta. Logo depois, encaixou as malas e saiu.
Ainda não seria a estrada. Ainda precisava ir à farmácia comprar seus remédios, também precisava abastecer o carro de gasolina, checar óleo e água, calibrar os pneus.
Custa muito sair de casa.
Marinho costumava preferir ficar bem dentro de sua casa. Sempre arrumava o que arrumar-  limpava, guardava, ajeitava, fazia listas do que arrumaria na próxima folga, olhava pela janela, esquecia de comer e quando percebia já era noite e estava com sono.
Sair para uma aventura era mais custoso ainda. Marinho era seu nome, queria mesmo era chamar-se Celeste, mas combinaria com ela o nome Pálido.
Se fosse Pálido, nem desejaria realizar um desejo. Mas se fosse Celeste, não sentiria essa culpa ao dar a partida no carro lotado de vontade marítima.
Marinho chegou na estrada, levava um pouco de culpa, sim, mas seu rosto sorria e o sol sorria também.
A estrada se abriu para ela. Ela entrou como um homem cuidadoso que ama uma mulher com vontade, mas com percepção atenta aos desejos encontrados dos corpos. Entrou com vontade de dialogar pra valer com a estrada, não teria pressa. Sabia que a praia a esperava.
Primeiro foi ouvindo o rádio mesmo. Depois, quando já não lhe agradava a trilha aleatória, escolheu cuidadosa a música que combinava com seu pulso- animado.
Olhando firme para frente, sempre para frente, Marinho percebeu uma sensação bem verdadeira percorrendo seu corpo e se instalando suavemente até tomá-la em plenitude de caminho sem volta.
Era a coragem que havia criado ao omitir sua viagem às próprias censuras.
Marinho corria na estrada à velocidade máxima permitida.
A coragem esquentava seu pé no acelerador, mas – além da coragem – ela havia criado também aquela esperteza que só os sábios corajosos têm- a esperteza de amar sua coragem para sempre, vivendo tudo, gostando de viver tudo, sem pressa, crescendo cada vez mais e só parando no instante de pousar os olhos bem claros e limpos naquilo que pulsava definitivo em seu coração.
Com a chave mágica na mão, Marinho mergulhou sua coragem novinha em folha no tão esperado Mar.

De todos os tons de azul – royal, celeste, cobalto, pálido, bebê, petróleo, água – Marinho continuaria sendo o seu. Já era coragem de não querer mais outro.
Nome Marinho.


quinta-feira, 7 de julho de 2011

A bordar


O pé muito grande pisa desajeitado a fina linha equilibrista.
O vento é forte, mesmo para corpo pesado, já que bruto, não modula movimento.
Não há calor nesse jogo, a não ser no turbulento contato entre linha e pele do pé que quase se amam e quase se destroem. O que tem é um frio congelante que penetra até os ossos e faz sangrar o pensamento.
Só se ouve um choro pequeno mas intenso pra valer. Ele amarra muito o coração e faz turvo o olhar. Tudo é nuvem cinza, pesada de porvir. Toda umidade está árida. Faz-se um sertão no céu da imaginação e dali não brota palavra.
As mulheres seguram as pontas da corda com mistérios especiais que ajudam a bailarina equilibrista equilibrar, mesmo que capenga.
Os homens não vivem aqui. Vivem longe mesmo, sempre ocupados com um trabalho que não finda.
As mulheres se olham e não se reconhecem, mesmo assim trabalham igual na mesma culpa de poder, por breve descuido, deixar a corda afrouxar.
É de tensão que se congela.
Às vezes não há por onde escapar. As brincadeiras estão longe, o prazer foi nadar no mar. E elas ficam ali, bordando um tecido de vida estática, total contracenso – bordado que se faz de segurar bem firme a linha cinza e só.
A coisa toda dura um segundo. Mas vale por eternidade. Paraíso e inferno são faces da mesma moeda, o que varia é o jeito que a seguramos.
Liberdade talvez seja, então, jogar a moeda na gruta e seguir sem fazer pedido algum. Desprender-se totalmente da moeda e seguir plenamente só.
Saber que vida mesmo é quase nada, já que ontem acabou e amanhã não existe. O hoje é agora e agora já não é mais.
A bailarina abrutalhada não vai mais dançar. Seguirá apenas em equilíbrio ameaçado pelos desejos que ainda permanecem nas mãos suadas das mulheres que não largam suas moedas.
Ela tem olhos que bóiam, deixa os cabelos bem soltos para que se enrosquem com o vento e quase a levem para o infinito. Pensa que se voasse embora terminaria por pousar no mar e ali seria um bom ninho de sal.
O sal, o vinho e o azeite. Ingredientes ancestrais de mitos que desviam esse texto do seu objetivo final (já que ele está quase acabando).
Apenas o sal mora no mar. E o sal é vida de bailarina despregada da linha cinza de bordadeiras congeladas.
Quando o destino se faz da imobilidade algo está fora de órbita. Talvez as bordadeiras tenham errado a linha escolhida, talvez tenham esquecido como se amarra o ponto. Talvez a bailarina tenha se ausentando da sua possibilidade de soltar os pés da corda simplesmente e cair! Talvez o texto esteja equivocado e a autora tenha confundido cansaço com tristeza.
Vai pensar... Quando a poesia vem em elemento flor de sal sem passado e sem futuro, ela traz em si a imagem da gruta receptiva de moedas estéreis.
Aquele choro pequeno e intenso está guardado carinhosamente em algum coração todo materno. E se acomoda em silêncio de nuvem branquinha e quente.
As bordadeiras, sem querer, se entreolham e sorriem nada.
A bailarina percebe e afrouxa os pés para que conversem melhor com a corda.
Essa linha, recebida agora pela pele que a ameaçava, começa a ficar cor de areia.
E o sal do suor das mãos que afrouxam suas moedas, escorre até os lábios de todas as mulheres que, ao perceberem que carregam o mar, passam do sorriso às risadas. E o mar, tão generoso sempre, provoca um calor quentíssimo naquilo que estava congelado e que passa a movimentar-se em harmonia ondulante com a corda. E as risadas vão às gargalhadas.
As mulheres sabem rir de si mesmas. Seja de dor, seja de prazer. Duas faces da mesma moeda. Moeda que ficou na gruta sem pedido algum. Liberdade anunciada no primeiro passo dado em direção
.