segunda-feira, 29 de março de 2010

Convidada

Quando ela me convidou na primeira vez, eu nem sabia muito que era capaz de salto daquele tipo.
Dada a impulsos, ainda mais pra revelar uma rebeldia adolescente, gostava de me surpreender cavando situações difíceis de sair ilesa.
Coisas que fazem disparar o coração e o suor frio molhar a pele tensa.
Coisas que fazem vida pulsar em olhos nus e entregues, meio cegos, meio vendo o que não é de ser visto.
Dessa brincadeira de ser real aquilo que queremos que seja, independente da matéria, independente do senso comum. Real porque eu sei isso possível em mim.
Essa propulsão em me lançar em abismos foi tema desse período de vida (pois acaba em algum tempo. pra mim foi antes de esfolar-me por completo).
Mas com ela não era de machucar, não. Longe disso, o contrário até.
Era salto para abismo de nuvens africanas, cheias de música de algodão, cheias de raízes fortes e sinuosas.
Havia uma entrada pela primeira vez na mata virgem. Eu mesma toda virgem. Ela, toda mata.
Daquele encontro de olhar de amiga cumplicidade, veio o beijo quente e inundado de aventura feminina.
Ela era minha possibilidade de libertação total, mulheril, febre nas faces, corpos em nós.
Tomamos o vinho. Fizemos o ritual de segredo. Namoramos um pouco.
Descobri que não fora convidada, mas convidei, puxei pra mim, peguei leviana seu braço e trouxe contra meu peito para testar como se rebenta a cerca.
Aproveitei sua presença completa para me exibir atriz mulher bem forte que não era, mas fiz que sim, pois vivia pra valer a fantasia de ser sua, agora era sua mulher.
Eu gostava de andar ao seu lado, mãos dadas, ia com calma para exibi-la toda minha.
Fiz que era a mais segura e escondia assim o grito que ecoava em meu estômago. Grito de criança no escuro que não pode jamais largar a mão da mãe.
Queria tanto aquele amor. Queria tanto ser mesmo a borboleta que voa simples de flor em flor e nem vê tempo passar, vive apenas e enche os olhos de alegria por ser a pura beleza.
Descobri bem rápido que as raízes estavam mesmo amarrando meus pés e era impossível voar, mesmo que sem querer. Estava mesmo amarrada na história do possível. Era mesmo menina. Era mesmo fantasia. Disse então o não que virou texto para suas cenas lindíssimas em palcos bem musicados.
E fiquei também eu com o não pro meu próprio desejo frustrado de saltar. Fiquei presa no impulso, na beirinha do precipício, ponta de pé, ar preso no pulmão, e o sim preso na garganta.
Anos depois te encontrei em outra geração. Você bem plena de caminhos que escolheu andar. Eu bem plena de atalhos que fui pegando meio sem querer e fui sabendo andar de improviso e fui gostando de ser assim surpreendida pela vida.
Tivemos uma filha juntas, vivemos esse amor para além de nós e somo nós de mulheres possíveis.

sábado, 6 de março de 2010

Fina linha




Há uma linha invisível, toda fina muito sutil, que nos liga a todos.
É o que chamo de vontade.
Há uma vontade entre as partes conectadas por esses fios de energia imaterial que cria fatos concretos. Podemos chamá-los de acaso, coincidência.
Mas, algumas vezes, não há sentido algum no acaso, nem pra muito tempo depois quando o futuro passa a presente e pode-se finalmente enxergar o que parecia impossível.
Isso acontece com o acaso.
Ele pode se explicar no futuro.
Sim, quando se pede a explicação. Pois pode-se viver simplesmente, sem olhar demais.
Mas não é isso que está em questão aqui.
Mas aquela feiticeira imponente que pousou por um dia na cortina do meu quarto e depois, na mesma semana, novamente.
Desses fios inevitáveis que saem da cidade estranha do Norte e percorrem meu corpo entre as veias.
É como se a mariposa tivesse vindo relaxar minhas conexões inquietas depois de cruzar o país, trazendo notícias do povo do Rio Negro, aliviando enfim minhas amarras com aquele passado.
Não acredito nesse acaso, mas na nossa vontade – minha, da cidade, da feiticeira – em completar esse ciclo que se iniciou numa filmagem de verão.
Agora a menina pode descansar.